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Como o IBOPE moldou a mídia?

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O IBOPE não foi apenas uma empresa de pesquisa: foi um espelho, um oráculo e, em muitos momentos, um ventríloquo da mídia brasileira. Criado em 1942, quando o rádio ainda reinava absoluto e a televisão era uma miragem de laboratório, o Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística aprendeu cedo o poder de medir o invisível — a atenção. Auricélio Penteado, seu fundador, queria apenas saber se sua Rádio Kosmos era ouvida. Descobriu, para seu desgosto e para a história do país, que não era. Do fracasso da audiência nasceu uma das entidades mais influentes do século XX brasileiro.

O IBOPE foi mais do que um termômetro da opinião pública: foi o estetoscópio do ego nacional. Nos bastidores da mídia, seus números eram tratados com a reverência de uma escritura sagrada. Um décimo de ponto no gráfico podia decidir o destino de apresentadores, a continuidade de novelas e até o humor de executivos em reuniões de pauta. O Brasil aprendeu a ver o próprio reflexo nas planilhas do instituto. “Dar ibope” virou verbo, virou sinônimo de sucesso, de popularidade, de relevância — um selo simbólico de existência no país onde tudo, do futebol à política, precisa de plateia.

“É curioso como uma empresa criada por um radialista frustrado acabou ditando o ritmo da cultura de massa. E, paradoxalmente, quanto mais o IBOPE se refinava, mais a mídia se tornava previsível. O público, antes misterioso, virou número; e o número virou mandamento.”

O império Montenegro — sob o comando de Paulo de Tarso e depois de seus filhos Carlos Augusto e Luís Paulo — conduziu a marca por décadas como uma dinastia silenciosa, mas onipresente. Eles transformaram a medição de audiência em algo mais do que estatística: em poder cultural. Quando o IBOPE passou a medir eleições, com suas pesquisas de boca de urna milimetricamente precisas, foi como se a democracia brasileira ganhasse um juiz paralelo, um coro técnico capaz de prever o grito das urnas. E o país acreditava — ou fingia acreditar — com fervor quase religioso.

O salto de 1988, quando o IBOPE foi a primeira empresa do mundo a medir audiência de TV em tempo real, selou sua influência. A televisão brasileira, sempre vaidosa, encontrou no monitoramento minuto a minuto a confirmação de sua própria centralidade. Era o casamento perfeito entre o exibicionismo das emissoras e o voyeurismo estatístico do instituto. A partir dali, nada seria exibido sem a bênção do gráfico.

A ditadura dos pontos e o evangelho do “share”

A ironia da história é que, ao medir o gosto do público, o IBOPE acabou moldando o próprio gosto. A tevê passou a se ajustar às curvas das medições, perseguindo picos de audiência como um corredor de maratona atrás do cronômetro. O “povo” que o IBOPE dizia representar era, na verdade, uma amostra cuidadosamente desenhada, mas transformada pela mídia em oráculo absoluto. Cada variação de ponto gerava terremotos de bastidor. Era a era do real time e do pânico no teleprompter.

Ao mesmo tempo, o instituto consolidava-se como símbolo de credibilidade. Seu nome estava nas bocas dos apresentadores, nos discursos de políticos e até no jargão das ruas. “Isso dá ibope” passou a definir o que merecia existir. O drama é que, nessa lógica, o Brasil aprendeu a confundir relevância com repercussão — um vício que persiste na era digital, agora rebatizado de “engajamento”.

A venda da divisão de mídia para o grupo Kantar, em 2014, e depois para o fundo H.I.G. Capital, apenas internacionalizou uma influência que sempre foi global de fato. Desde os anos 1990, o IBOPE já exportava métricas para toda a América Latina, ensinando que a audiência era a nova moeda continental. A medição se sofisticou, migrou para o digital, abraçou o streaming, mas o dogma permaneceu o mesmo: o que não é medido, não existe.

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É curioso como uma empresa criada por um radialista frustrado acabou ditando o ritmo da cultura de massa. E, paradoxalmente, quanto mais o IBOPE se refinava, mais a mídia se tornava previsível. O público, antes misterioso, virou número; e o número virou mandamento. Quem ousava desafiar as métricas era tratado como herege de mercado.

O legado do IBOPE, contudo, não se restringe à medição. Seu Instituto Paulo Montenegro, criado em 2000, mostrou um lado civilizatório: medir o analfabetismo funcional, estimular o pensamento crítico e aproximar pesquisa e educação. Um raro lampejo de utilidade pública em meio à engrenagem do espetáculo. Era como se o mesmo sistema que vigiava a audiência tentasse, de algum modo, instruí-la.

Mas o fato é que o IBOPE criou a régua pela qual a mídia se mede — e se julga. Quando uma novela despenca, é o IBOPE quem “mata”. Quando um candidato surpreende, é o IBOPE quem “errou”. O instituto virou personagem invisível, onisciente e inevitável. Na era das redes sociais, onde os algoritmos substituíram os people meters, sua sombra ainda paira. Cada curtida, cada visualização, é um pequeno ibope digital, um eco daquele impulso original: saber quem está olhando.

O Brasil, afinal, é um país obcecado por olhar e ser olhado. E o IBOPE, ao longo de oito décadas, apenas deu método a essa mania. O problema é que, entre a curiosidade e o controle, há uma linha tênue — e a mídia brasileira cruzou-a há muito tempo. Se o IBOPE moldou a mídia, foi porque a mídia quis ser moldada. E o público, complacente, aceitou o espelho.

O IBOPE foi a primeira empresa a medir audiência de TV em tempo real (Foto: Wiki)
O IBOPE foi a primeira empresa a medir audiência de TV em tempo real (Foto: Wiki)

No fim, talvez o verdadeiro sucesso do IBOPE não tenha sido medir o público, mas ensinar o público a medir-se a si. Um país que aprendeu a se enxergar em pontos de audiência dificilmente voltará a olhar para o conteúdo — apenas para o reflexo. E, como todo espelho que encanta, o do IBOPE continua refletindo não o que somos, mas o que queremos parecer.


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