Laranja Mecânica: o mais proibido dos EUA
Há ironias que atravessam décadas como lâminas afiadas — e uma delas é ver Laranja Mecânica, de Anthony Burgess, ser novamente alvo de censura em 2025. Um romance que nasceu para chocar os moralistas, questionar o livre-arbítrio e desconstruir a ideia de obediência social, agora é tratado como ameaça pedagógica. Nos Estados Unidos, o livro tornou-se o mais censurado em escolas, segundo o relatório da PEN America. Quase sessenta anos após sua publicação, o ultraviolento Alex e seus “droogs” voltam a ser inimigos públicos — não por suas ações, mas por suas ideias.
Há algo profundamente simbólico em ver uma sociedade que se diz livre vetar justamente uma obra que discute o preço da liberdade. Laranja Mecânica é, acima de tudo, uma parábola sobre o controle. O Estado, na história, tenta “curar” a violência de Alex através de condicionamento psicológico, suprimindo nele o desejo de fazer o mal — e, com isso, anulando também sua capacidade de escolha. Ao barrar o livro nas escolas, o moralismo contemporâneo parece fazer o mesmo: impedir que jovens tenham contato com ideias incômodas, acreditando que a ignorância é sinônimo de inocência.
“Nos anos 1970, o próprio Stanley Kubrick retirou o filme de circulação no Reino Unido por conta das polêmicas envolvendo supostos crimes inspirados por ele. Décadas depois, a história se repete sob outra forma: o cancelamento disfarçado de prudência.”
A censura, claro, nunca se apresenta com o rosto nu. Ela vem mascarada de proteção: “as crianças não estão prontas para isso”, dizem. “O livro é violento demais”, alegam. O problema é que Laranja Mecânica nunca pretendeu ser um conto de ninar. Burgess, ao escrever em 1962, estava mais interessado em provocar do que em confortar. Sua prosa inventiva — repleta do dialeto “nadsat”, mistura de gírias russas e inglês — é um espelho sujo da juventude alienada e brutalizada pela própria sociedade que tenta domesticá-la.
Hoje, o espelho continua a refletir, mas quem olha parece não gostar do que vê. Nos EUA atual, a censura literária se tornou um fenômeno político. Grupos conservadores, amparados por uma cruzada contra o que chamam de “conteúdo imoral”, estão conseguindo pressionar distritos escolares a banirem livros que tratem de violência, sexualidade, racismo e até mesmo liberdade de pensamento. A ironia: quase todos os títulos banidos são, de alguma forma, críticos à própria lógica do autoritarismo.
A distopia que virou manual
O que Burgess imaginou como uma distopia está se tornando um manual de conduta social. O “tratamento Ludovico” — aquele processo em que Alex é obrigado a assistir cenas de violência até se tornar incapaz de reagir sem náusea — encontra seu paralelo na sociedade que quer higienizar o pensamento. Não se trata mais de violência física, mas de uma violência cultural: a tentativa de esterilizar o desconforto.
Curiosamente, a justificativa da censura não é muito diferente da lógica do Estado no livro. Em ambos os casos, o medo é o combustível. Medo do caos, medo da juventude, medo da reflexão. E quando o medo guia a educação, o pensamento se apequena. O livro de Burgess, que já foi acusado de glorificar a violência, na verdade, faz o oposto: questiona a domesticação forçada da alma humana. Mas explicar isso a um comitê escolar tomado por pânico moral é como tentar ensinar Nietzsche num culto evangélico de domingo.
A censura, além de tudo, é ineficaz. A proibição apenas aumenta o fascínio. Jovens leitores, como Alex e seus comparsas, são atraídos por aquilo que lhes é negado. Proibir Laranja Mecânica é dar a ele a publicidade que nenhuma editora poderia comprar. E há uma ironia quase shakespeariana nisso: quanto mais tentam esconder o livro, mais ele prova seu ponto. A violência mais perigosa é a institucional — a que se esconde atrás de burocratas bem-intencionados e listas escolares revisadas por pais vigilantes.
Nos anos 1970, o próprio Stanley Kubrick retirou o filme de circulação no Reino Unido por conta das polêmicas envolvendo supostos crimes inspirados por ele. Décadas depois, a história se repete sob outra forma: o cancelamento disfarçado de prudência. O que se teme não é Alex, o delinquente ficcional, mas o leitor que ousa pensar por conta própria.
Laranja Mecânica sobrevive porque é incômodo. Ele continua a provocar debates, inspirar teorias e assustar os zeladores do pensamento único. Em um mundo saturado de filtros, algoritmos e moral de vitrine, Burgess permanece perigoso — e, portanto, necessário. Talvez a melhor homenagem que se possa prestar a ele seja exatamente essa: continuar lendo o que não querem que lemos.

Afinal, como diria o próprio Alex, “o que é o bem, se o bem não é escolhido?” A pergunta continua soando como um tapa na cara da hipocrisia — um tapa que, pelos vistos, ainda dói mais do que a ultraviolência.
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