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O Livro Negro do Comunismo é factual?

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Publicado em 1997, O Livro Negro do Comunismo: Crimes, Terror e Repressão se tornou um fenômeno editorial e político, com impacto que ultrapassou o campo acadêmico. Escrito por um grupo de historiadores franceses liderado por Stéphane Courtois, o livro prometia ser um inventário dos horrores cometidos por regimes Comunistas no século XX. A proposta — ambiciosa, polêmica e explosiva — era simples: quantificar o terror. E Courtois o fez com zelo quase contábil, estimando em cerca de 100 milhões as vítimas do Comunismo. Mas, desde o lançamento, a questão paira como uma nuvem de pólvora sobre a obra: trata-se de uma investigação factual ou de um panfleto político sofisticado?

O impacto inicial foi devastador, especialmente em países do Ocidente ainda divididos entre as memórias da Guerra Fria e o colapso recente da União Soviética. A narrativa do livro oferecia uma espécie de catarse histórica: ao denunciar os crimes do Comunismo, colocava o Nazismo e o Socialismo de Estado no mesmo patamar moral. Era, em essência, uma tentativa de nivelar o campo simbólico. O “mal vermelho” merecia, enfim, um Nuremberg. Não demorou, contudo, para que o livro fosse acusado de distorção, seletividade e, mais grave ainda, de comparar o incomparável.

“O livro também não é neutro quanto à temporalidade de seu lançamento. Em 1997, o mundo vivia o apogeu do neoliberalismo e a euforia do “fim da história” proclamado por Francis Fukuyama. Publicar um catálogo de crimes do Comunismo naquele contexto era quase uma oferenda ideológica ao triunfo do Capitalismo.”

Críticos, inclusive alguns dos próprios coautores — como Nicolas Werth e Jean-Louis Margolin —, acusaram Courtois de manipular dados, exagerar cifras e adotar critérios distintos para medir horrores semelhantes. Enquanto o Nazismo é geralmente estudado sob o prisma de sua ideologia genocida e racista, o Comunismo foi tratado no livro como uma entidade monolítica, invariavelmente assassina, sem levar em conta contextos históricos, resistências internas ou variações locais. A ciência cedeu lugar à militância, disseram alguns.

Mas, paradoxalmente, é justamente essa militância que explica o fascínio duradouro do livro. O Livro Negro do Comunismo fala mais à emoção política do que à razão historiográfica. Ele não apenas narra, ele acusa. E o faz com uma retórica irresistível para leitores que buscam certezas morais em meio às ambivalências do século XX.

A contabilidade da dor e o fetiche da cifra

Courtois e seus colaboradores tentaram transformar tragédias humanas em planilhas de Excel histórico. Mortos por fome, por execução, por trabalho forçado ou por políticas mal concebidas — todos foram somados como produtos de uma mesma ideologia. O resultado é um número que impressiona, mas também anestesia. Quando o sofrimento se transforma em estatística, a história perde nuance e o leitor ganha apenas um senso de horror abstrato.

O debate não é, portanto, sobre negar crimes comunistas — eles existiram, e em escala brutal. O problema é metodológico e ético: até que ponto se pode fundir experiências distintas — como a União Soviética de Stalin, o Camboja de Pol Pot, a China de Mao e até episódios menores como o Peru de Sendero Luminoso — sob uma mesma rubrica ideológica? A tentativa de condensar todas as tragédias em um só rótulo talvez diga mais sobre o desejo ocidental de exorcizar fantasmas políticos do que sobre os fatos históricos em si.

O livro também não é neutro quanto à temporalidade de seu lançamento. Em 1997, o mundo vivia o apogeu do neoliberalismo e a euforia do “fim da história” proclamado por Francis Fukuyama. Publicar um catálogo de crimes do Comunismo naquele contexto era quase uma oferenda ideológica ao triunfo do Capitalismo. A obra serviu de combustível para a retórica anticomunista dos anos 2000, e até hoje é usada como arma retórica em debates rasos de internet, onde qualquer menção a Marx é seguida de links e citações do “livro negro”.

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Ainda assim, há méritos incontornáveis. A obra deu visibilidade a vítimas esquecidas, como as dos gulags soviéticos ou dos campos de reeducação chineses, forçando a academia a lidar com os horrores que, muitas vezes, a esquerda preferia silenciar. Nesse sentido, O Livro Negro cumpre um papel moral — o de lembrar que a utopia, quando convertida em regime de poder, pode ser tão perversa quanto o sistema que pretende destruir.

Mas a honestidade intelectual exige distinguir entre historiografia e ideologia. O problema de Courtois não é denunciar crimes, e sim sugerir que o Comunismo é, por natureza, criminoso. É uma generalização tão perigosa quanto afirmar que todo Capitalismo leva inevitavelmente ao fascismo. A história é mais complexa — e mais incômoda — do que a propaganda permite.

O Livro Negro do Comunismo é, ao mesmo tempo, uma obra necessária e falha. Necessária por lembrar que o socialismo real produziu sofrimento e morte em larga escala. Falha por transformar esse fato em dogma, ignorando a pluralidade do que se chamou “comunismo” ao longo do século XX. O livro é factual em parte, e panfletário em outra. Uma mistura de arquivo e tribunal, de documento e sermão.

O Livro fala mais à emoção política do que à razão historiográfica (Foto: Wiki)
O Livro fala mais à emoção política do que à razão historiográfica (Foto: Wiki)

O leitor atento deve lê-lo como o que é: um testemunho do trauma do pós-Guerra Fria, não uma Bíblia da verdade histórica. No fim das contas, talvez o “livro negro” revele menos sobre o Comunismo e mais sobre o medo persistente do Ocidente de encarar suas próprias sombras — inclusive as pintadas nas cores da liberdade e do mercado.


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