Traços da Morte: fake ou realidade?
Nos anos 90, o mundo ainda não tinha o YouTube, nem o TikTok, e muito menos os limites morais tão maleáveis da internet atual. Era a era das locadoras, das fitas VHS e das capas que prometiam mais do que entregavam. Foi nesse cenário de curiosidade mórbida e sensacionalismo rentável que surgiu a série documental “Traços da Morte” (Traces of Death) — um produto audiovisual que se vendia como “real”, mas tinha o gosto agridoce de uma encenação grotesca. A promessa era simples e indecente: mostrar a morte como ela é. O resultado? Um retrato do apetite humano pelo proibido.
O público, embalado pelo rumor de que tudo ali era “verídico”, mergulhava no abismo da própria curiosidade. A série era uma espécie de colagem macabra — acidentes, necropsias, guerras, rituais e corpos estirados como troféus de uma era pré-digital. Diferente do famoso Faces da Morte, que misturava ficção e realidade sem confessar, Traços da Morte vendia-se como “puro documentário”. Era o produto ideal para o adolescente curioso ou o adulto entediado dos anos 90. O choque virou entretenimento, e o VHS, um portal para a morte filmada.
“A pergunta que paira é simples e incômoda: por que gostamos de ver o que nos repulsa? Freud talvez diria que é a pulsão de morte, o impulso de olhar para o fim para reafirmar a própria existência. Mas talvez seja apenas o mesmo desejo de “ver para crer”, ainda que o que se veja não mereça crença.”
Com o tempo, vieram as dúvidas: o que era real e o que era encenado? Alguns trechos — sobretudo os supostos vídeos de guerra ou execuções — pareciam genuínos, mas outros tinham uma estética duvidosa, digna de produção caseira. O criador da série, Brain Damage Films, nunca teve o pudor de negar ou confirmar nada com clareza. Talvez esse fosse o segredo: deixar o público em suspenso entre o horror e a suspeita. Afinal, o medo sempre foi mais rentável quando misturado à incerteza.
O impacto cultural de Traços da Morte não foi pequeno. Circulava clandestinamente, passava de mão em mão, e sua simples menção já bastava para criar aura de tabu. Assistir era um ato de coragem — ou de imbecilidade, dependendo do ponto de vista. O “proibido” sempre teve um charme próprio, e Traços da Morte surfou magistralmente nessa onda.
A morte como espetáculo
O fascínio pelo grotesco é antigo. Desde as execuções públicas nas praças medievais até os reality shows de hoje, o ser humano parece incapaz de resistir ao espetáculo do sofrimento. Traços da Morte apenas traduziu essa pulsão para o formato audiovisual de seu tempo. Não era jornalismo, nem documentário: era exploração disfarçada de curiosidade científica.
O mais perturbador é perceber como a estética do horror se modernizou, mas não se perdeu. A mesma lógica que alimentava as locadoras nos anos 90 agora move o algoritmo. Hoje, os vídeos reais de tragédias circulam livremente, com um clique. O que antes era contrabando visual, hoje é viralização. Em outras palavras: o mundo se digitalizou, mas o gosto pelo abismo continua analógico.
Há também um componente moral nessa história. Muitos dos que assistiam a Traços da Morte diziam querer “entender a morte”, como se a exposição ao choque trouxesse alguma iluminação filosófica. Mas o que realmente se via era um strip-tease ético. A dor do outro transformada em espetáculo, o sangue em mercadoria, e a curiosidade humana, travestida de coragem intelectual. Como se a brutalidade da realidade pudesse ser digerida com pipoca.
A pergunta que paira é simples e incômoda: por que gostamos de ver o que nos repulsa? Freud talvez diria que é a pulsão de morte, o impulso de olhar para o fim para reafirmar a própria existência. Mas talvez seja apenas o mesmo desejo de “ver para crer”, ainda que o que se veja não mereça crença.
Com o tempo, a série ganhou status de culto entre os nostálgicos do VHS e os curiosos digitais. É citada em fóruns, reaparece em listas de “filmes proibidos” e inspira até documentários sobre a própria morbidez humana. Ironia das ironias: Traços da Morte tornou-se um documento sobre a própria era da desinformação. O que se vendia como “real” era, no fundo, um reflexo de um público disposto a acreditar em qualquer coisa — desde que viesse embalada com o selo do proibido.
Hoje, quando fake news e vídeos manipulados dominam as telas, Traços da Morte parece quase ingênuo. Seu impacto chocante perdeu força, mas seu legado sobrevive: a dúvida entre o falso e o verdadeiro, o prazer em assistir o inassistível, o fascínio pela fronteira do horror. Talvez essa seja a verdadeira mensagem que restou — a de que, no fundo, o ser humano não quer tanto entender a morte, mas apenas espiá-la de um lugar seguro.

Traços da Morte não foi uma obra-prima, tampouco um documentário honesto. Foi um espelho torto do nosso voyeurismo. E, como todo espelho torto, revelou mais sobre quem assistia do que sobre aquilo que mostrava.
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