A Psicologia das Massas: uma obra perigosa
O livro A Psicologia das Massas, de Gustave Le Bon, publicado pela primeira vez em 1895, é uma das obras mais influentes — e, paradoxalmente, mais perigosas — da história da psicologia social. Apesar de seu caráter pioneiro na análise do comportamento coletivo, sua herança é marcada por uma ambiguidade moral que atravessa o século XX e ainda reverbera neste início de século XXI.
Le Bon, médico, antropólogo amador, psicólogo autodidata e também dramaturgo frustrado (com poucas incursões cênicas de sucesso), não era, de fato, um cientista no sentido rigoroso do termo. Era um homem das letras e das ideias, com um faro aguçado para o espírito do tempo. Nascido em 1841 na França, Le Bon testemunhou a decadência do Segundo Império, a Comuna de Paris e a instabilidade que assolava a Europa. Sua obra mais conhecida não pode ser lida fora desse contexto de crise das instituições e medo das massas — especialmente das massas urbanas empobrecidas e politicamente mobilizadas.
“Em tempos como os nossos, marcados por desinformação, manipulação digital e crises de confiança nas instituições democráticas, ideias como as de Le Bon voltam a circular com força.”
Em A Psicologia das Massas, Le Bon apresenta uma tese ousada e perturbadora: quando os indivíduos se reúnem em multidão, perdem sua racionalidade e tornam-se dominados por emoções primitivas e impulsos inconscientes. Para ele, a multidão é facilmente sugestionável, instável e irracional. Essa condição, segundo o autor, reduz o ser humano ao seu estado mais primitivo — quase animalesco — transformando a coletividade em um organismo novo, sujeito a líderes carismáticos que sabem manipular símbolos, mitos e palavras de ordem.
A narrativa construída por Le Bon tem um poder retórico evidente. Ele escreve com autoridade, apesar da falta de comprovação empírica sólida para muitas de suas afirmações. Ainda assim, sua obra teve um impacto significativo sobre intelectuais, políticos e estrategistas do século XX. É notório que Benito Mussolini, Adolf Hitler e outros líderes totalitários leram Le Bon e se utilizaram de seus princípios para mobilizar massas — não pela razão, mas pelo medo, pelo entusiasmo coletivo e pelo culto à autoridade.
Essa apropriação histórica já seria suficiente para obrigar qualquer leitura crítica da obra. No entanto, até hoje, muitos ainda leem A Psicologia das Massas como se fosse uma radiografia objetiva do comportamento humano em sociedade. Há algo profundamente conservador — para não dizer elitista — em sua proposta: Le Bon vê a multidão como uma ameaça à ordem, à civilização e à razão. Para ele, a democracia é perigosa justamente porque dá voz à massa, que ele considera incapaz de discernimento.
O medo da multidão e a ilusão da razão
O problema maior da obra, portanto, não é apenas o diagnóstico que faz do comportamento coletivo, mas a prescrição implícita: se as massas são irracionais, é preciso controlá-las. E quem controla? As elites “esclarecidas”, os líderes “superiores”, os oradores talentosos que sabem seduzir pelo verbo e pela estética. É neste ponto que o livro se torna perigoso.
Em tempos como os nossos, marcados por desinformação, manipulação digital e crises de confiança nas instituições democráticas, ideias como as de Le Bon voltam a circular com força. A ideia de que o povo não sabe o que faz, de que é preciso “guiar” a população para o “caminho certo”, se disfarça em discursos tecnocráticos, autoritários ou até mesmo salvacionistas. Não à toa, plataformas de marketing político e psicometria eleitoral retomam, sem dizer o nome, muitas das teses apresentadas pelo autor francês.
Poucos se lembram hoje de que Gustave Le Bon tentou, ainda jovem, a carreira de dramaturgo, sem sucesso. Suas peças não chegaram a comover plateias ou a fixar lugar no cânone francês. Mas há algo teatral em seu texto mais conhecido. Sua visão da multidão como uma entidade quase demoníaca lembra, em muitos trechos, o estilo de tragédia. A massa é o monstro coletivo, o coro grego em fúria, prestes a destruir tudo o que não compreende. Os líderes são os heróis ou vilões, dependendo da intenção do dramaturgo.

Essa teatralidade ajuda a entender o fascínio que o livro continua a exercer. Mas ela também exige cautela. A vida social é mais complexa do que as dicotomias entre razão e emoção, indivíduo e grupo, civilização e barbárie. Estudos contemporâneos da psicologia social e da sociologia demonstram que as massas também são capazes de solidariedade, reflexão e construção coletiva — vide os inúmeros movimentos democráticos, ecológicos e de justiça social ao longo do século XX e XXI.
Por fim, A Psicologia das Massas deve ser lida como um documento histórico: uma expressão do medo das elites diante do avanço da participação popular. Le Bon oferece uma teoria do caos travestida de ciência, que se presta tanto à curiosidade acadêmica quanto à manipulação ideológica. Ignorá-lo seria ingênuo. Mas aceitá-lo sem crítica é, hoje, um risco ético e político que não podemos correr.
Última atualização da matéria foi há 1 mês
Sly Stone: morto, antes, esquecido...
junho 14, 2025"O Inquilino": de Polanski via Topor
junho 13, 2025Da Lama ao Caos: um assombro sonoro
junho 12, 2025"Memória": a visão de René Magritte
junho 11, 2025Hara-Kiri: um Pasquim bem mais radical
maio 30, 2025Leon Eliachar: o silêncio de um craque
maio 23, 2025"Luka": o sucesso de uma letra triste
maio 16, 2025Dr. Fantástico: insanidade do ontem e hoje
maio 9, 2025Kids: as quase três décadas da polêmica
abril 25, 2025Leila Diniz: a desbocada que chacoalhou tudo
abril 18, 2025A melancolia captada por Albrecht Dürer
abril 11, 2025Speedball: a mistura que levou John Belushi
abril 6, 2025
Eder Fonseca é o publisher do Panorama Mercantil. Além de seu conteúdo original, o Panorama Mercantil oferece uma variedade de seções e recursos adicionais para enriquecer a experiência de seus leitores. Desde análises aprofundadas até cobertura de eventos e notícias agregadas de outros veículos em tempo real, o portal continua a fornecer uma visão abrangente e informada do mundo ao redor. Convidamos você a se juntar a nós nesta emocionante jornada informativa.
Facebook Comments