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Ivanir dos Santos lidera contra os preconceitos

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Nascido e criado na favela do Esqueleto, Mangueira, onde hoje se localiza a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), até ser internado à força no antigo Juizado de Menores, Ivanir dos Santos, tem uma história que se confunde com as bandeiras de lutas por liberdade, justiça, fraternidade e o fim do racismo. Foi criado durante a infância e adolescência nos corredores e pátios da antiga Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor – Funabem. Com suas ações, criou jurisprudência sobre a Lei nº. 7.716, que transformou o racismo em crime inafiançável e imprescritível. Por sua luta contra o racismo, a xenofobia e a intolerância, recebeu, em 1997, da Federação Israelita do Rio de Janeiro, o Prêmio Adolpho Bloch. Sua iniciação aos Orixás se deu em janeiro de 1981, em Maragojipe, Salvador, no Ilê Alabalaxê do babalorixá Edinho de Oxossi, onde cumpriu todas suas obrigações tornando-se babalorixá. Em visita à Nigéria, na cidade de Ogbumosho, inicia-se nos estudos de Ifá. Em fevereiro de 2006, sagra-se babalawo pelo Olowo Jokotoye Bankole. “As pessoas ficam surpresas por acharem que eu falo bem. Eu tenho um certo conhecimento e eles se surpreendem com o fato de eu falar da minha religião da mesma forma que eles falam da deles. E eles falam bem da religião deles porque beberam na África. É uma surpresa para eles eu falar do Criador, pois, nas religiões de matriz africana existe o Criador”, afirma o babalawo.

Ivanir, em que momento de sua vida, o senhor foi moldado e teve a consciência que deveria lutar pela liberdade, pela justiça e pelo fim do racismo?

Primeiro uma constatação que vem da adolescência. Fui aluno da Fundação Nacional do Bem Estar do Menor (Funabem), onde 95% dos estudantes eram negros, e boa parcela deles era de filhos de mãe solteira e moravam em favelas e em áreas carentes. E quando eles voltavam para as suas comunidades continuavam na situação de pobreza. No mercado de trabalho tinham dificuldade de conseguir uma vaga por serem negros e também ex-alunos da Funabem. Com isto vai criando consciência de que há espaço na sociedade que não é igual para todos. Depois jovem, operário, fui aluno da Faculdade Notre Dame e lá era o contrário, pois, 98% eram brancos. Isso deixa claro que existe uma injustiça muito grande. A isso se juntou a minha militância no Movimento Negro, a convite do Togo Ioruba, até eu frequentar o Instituto de Pesquisa das Culturas Negra (IPCN). Daí vem a minha consciência sobre a desigualdade racial e a luta por justiça. No caso dos ex-alunos da Funabem foi criada a Associação dos Ex-Alunos da Funabem (Asseaf), pois, na Baixada Fluminense, inúmeros deles pagavam um preço muito alto pelo fato de retirarem alimentos em supermercados para levar para as suas comunidades.

O que o senhor considera ser primordial, para que o Brasil seja um Estado laico de fato?

Antes de mais nada é preciso entender o que é um Estado laico. Ser Estado laico formalmente não basta. Pessoas que fazem concurso entram no Serviço Público, são funcionários de carreira e têm religião. Outro não tem religião. É inaceitável alguém usar a sua opção religiosa para oprimir outros segmentos religiosos, minoritários ou não. O Estado tem de ser o mediador dessas relações. Existem pessoas que fazem concurso público, assumem funções de Estado e usam esta condição para perseguir religiões de matriz africana. Isto não é um Estado laico. É um funcionário confessional que se utiliza de seu espaço no Estado para perseguir os outros.

Mesmo tendo uma história riquíssima, e num país de maioria negra, as religiões afro-brasileiras sempre são taxadas com um certo preconceito e ligadas por alguns líderes de outras denominações como demoníacas. Acredita que isso acontece por má-fé, falta de conhecimento ou por outros interesses?

É preciso destacar que, antes de ver e entender mal e não aceitar a religião de matriz africana, não se entende e nem se aceita a África. O resto é consequência. O Ocidente não compreende e não aceita a África. Na visão de muitos a África não tem conhecimento e não tem tecnologia, como se o continente africano fosse um lugar atrasado e, na verdade, a África, primeiro, é o berço da civilização mundial, ela nasceu lá. A reprodução desse conceito de que os africanos não têm conhecimento e o estigma, para os afrodescendentes que vivem aqui, criam preconceito e discriminação. Isto seja em relação à sua cultura e religiosidade, seja em outros aspectos. O cristianismo nasceu na África. Os hebreus viveram 400 anos no Egito. Isto sem falar de sua origem, na Etiópia. Moisés era um africano, e Deus entregou os mandamentos na mão deste africano. Isto, então, é uma contradição muito grande. Esse debate marcado por esta contradição é de característica eurocêntrica, eugenista, longe de qualquer vestígio de identidade africana, faz com os adeptos de religião de matriz africana se envergonhem da sua espiritualidade e migrem para outras religiões. Existe também uma visão de mercado. É igual a fazer com que o negro tenha vergonha de si, da sua cultura e da sua identidade. Por trás disso tem todo um projeto de exterminar essas religiões e levar os seus adeptos para as denominações neopentecostais.

O senhor já sentiu na pele, um preconceito mesmo que seja velado, quando fala que é um babalawo?

É claro. As pessoas ficam surpresas por acharem que eu falo bem. Eu tenho um certo conhecimento e eles se surpreendem com o fato de eu falar da minha religião da mesma forma que eles falam da deles. E eles falam bem da religião deles porque beberam na África. É uma surpresa para eles eu falar do Criador, pois, nas religiões de matriz africana existe o Criador. A imagem do Criador é uma força que vem da África. Em toda cultura africana existe a figura do Criador. Isso não é monopólio (ocidental). Em segundo lugar o meu conhecimento das relações teológicas de algumas religiões. Eu estudei em uma faculdade Católica, e estava de quelé na época, de preceito, pois, eu era um iaô [filhos de santo no Candomblé já iniciados na feitura de santo mas que ainda não completaram o período de 7 anos da iniciação]. Pai de Santo eles acham que é uma coisa pejorativa e babalawo eles não sabem o que é e acham que é uma coisa aparentemente importante, mas na verdade, este sacerdote tribal, que é aquele que fala com Deus por sinais existiu justamente nos primórdios do Cristianismo. Os hebreus, de Abraão a Moisés, todos eles liam Deus por sinais. No momento em que se vai a algumas cerimônias religiosas com outras religiões isto fica muito nítido. O encontro com o Papa (Francisco), que alguns podem achar um absurdo, mas é o reconhecimento de uma prática religiosa milenar e que se perpetua aqui no Brasil por meio dos sacerdotes do Candomblé.

A mídia de certa forma contribui para a intolerância religiosa em nosso país?

Sobre religião e mídia, eu não diria toda a mídia, mas alguns meios de comunicação têm sido utilizados como veículos de estigmatização das religiões de matriz africana. Todos esses grupos fundamentalistas, preconceituosos, racistas e intolerantes, que vendem ódio fazem isto por intermédio de meios de comunicação, pela televisão, pela Internet e pelo rádio. Usam a nossa imagem de forma extremamente errada. Por outro lado, existe hoje um segmento da mídia que tem outra postura e não tem embarcado nessa onda, pelo contrário, eles têm se colocado na defesa da diversidade religiosa no Brasil. Isto temos de reconhecer, mas o mesmo comportamento, que persegue as religiões de matriz africana, wiccanos, islâmicos, budistas, ciganos e outros persegue também os ateus, pois, acham que se você não tem religião você não é de Deus. Isto, na verdade é uma contradição, pois, todo religioso sabe que Deus nos dotou de um dom divino que é o do livre arbítrio, se é livre arbítrio se pode até duvidar que Ele (Deus) existe, é um direito de cada um e ninguém pode demonizar o outro por isso. Isto é muito diferente de todos acreditarem no mesmo que um acredita.

Ainda falando de mídia, o que o senhor acredita que poderia ser feito para que a mensagem das religiões afro-brasileiras chegassem de uma forma mais clara, sem distorções para os telespectadores, ou seja, algum tipo de cota em alguns horários dos meios de comunicações resolveria essa questão?

Existem duas coisas que eu defendo. Antes de se chegar à comunicação é preciso chegar à educação. Os profissionais de mídia foram, primeiro, educados com base em um viés cultural e religioso. Por isso eu insisto na aplicação no ensino fundamental e médio da Lei 10.639/03 que determina o ensino de História da África e da Cultura Afro-brasileira. Isso é fundamental, pois, se você conhece você combate a ignorância. Boa parte desses problemas não existiria. É preciso haver uma visão correta sobre o papel da África e dos africanos no Brasil. Os africanos foram escravizados por mais de 350 anos e deram uma contribuição efetiva para a construção dessa nação. Ao mesmo tempo, é necessário abrir espaço na mídia para uma leitura mais correta na mídia sobre a nossa religião. Afinal, não basta apenas falar sobre escola de samba na época do Carnaval, como entretenimento, e sim como contribuição. A visão estereotipada é reproduzida, então, não sei se cota resolveria. Pelo menos as televisões públicas deveriam mostrar mais essa pluralidade. Caso a grande mídia levasse em conta que mais da metade da população brasileira é de descendentes de africanos, obviamente haveria uma mídia mais próxima dessa população.

Fale um pouco do seu trabalho à frente da CCIR (Comissão de Combate à Intolerância Religiosa).

O trabalho, primeiramente é para ampliar na sociedade a consciência de defesa da liberdade religiosa. É combater os atos de intolerância, quando eles ocorrem, articular com a Polícia para que faça uma investigação importante e com o Ministério Público (MP) para que faça denúncia em momentos cruciais. Houve casos que nós saímos vitoriosos no Judiciário e outros que nós perdemos, mas acho que o saldo é positivo. Nós mobilizamos a sociedade com a Caminhada pela Liberdade Religiosa. Fazemos atividade cultural inter-religiosa chamada “Cantando a gente se entende”, na qual religiosos se apresentam juntos, pois, quando você conhece a religião do outro você não pode discriminar. Existem também as ações em escolas. A vitória mais importante á quando um juiz diz que Candomblé e Umbanda não são religiões e há reação da sociedade e do Ministério Público em relação às nossas religiões. Pela primeira vez na história a Igreja Católica, entrou como amicus curiae [Intervenção assistencial em processos de controle de constitucionalidade por parte de entidades que tenham representatividade adequada para se manifestar nos autos sobre questão de direito pertinente à controvérsia constitucional. Não são partes dos processos; atuam apenas como interessados na causa] em uma ação em defesa das nossas religiões, assim como a Federação Israelita entrou e a Sociedade Muçulmana se colocou ao nosso lado. Foi uma vitória da comissão importante para nós.

Quando se fala em liberdade de expressão, muitos dizem que ela não existe em nosso país com total plenitude em todos os níveis. O que o senhor acredita ser primordial para que essa liberdade seja realmente plena?

É preciso defender sempre a liberdade de expressão, mesmo ela não sendo plenamente satisfatória para muitos segmentos da população. Os negros e as religiões de matriz africana são dos mais prejudicados pelo discurso da liberdade de expressão. Liberdade de expressão é uma coisa e disseminar o ódio, o preconceito e a mentira é outra coisa. Ainda assim defendo a liberdade de expressão, mas ela para ser plena, precisa espelhar a pluralidade na sociedade brasileira. Uma coisa é a opinião do indivíduo e outra os grupos se verem representados nas opiniões manifestadas, e isso, nem sempre é a verdade. No debate sobre as cotas raciais nas universidades isso ficou muito nítido. Aquela liberdade de expressão era totalmente desproporcional em relação ao que defendiam as cotas. Isso é uma forma de manipulação da opinião pública. Eu sendo de um grupo prejudicado pela circulação de opiniões ignorantes e até racistas, ainda assim defendo a liberdade de expressão.

O tratamento dado pelo meio político à religião afro-brasileira nos bastidores, têm o mesmo peso, por exemplo, ao tratamento dado às igrejas evangélicas?

Não. Em primeiro lugar, os evangélicos conseguiram uma coisa fundamental que foi fidelizar o voto. Eles foram eficientes nisso. Todas as alianças políticas levam em conta uma grande liderança evangélica e pelo peso eleitoral que eles adquiriram. E não é à toa que eles contam com uma bancada parlamentar conservadora e xenófoba. Nós não fidelizamos o voto, a nossa votação é muito dispersa. Existe, porém, um dado novo importante, pois, hoje qualquer candidato que mostre um viés intolerante, se elege proporcionalmente, mas não se elege para cargo majoritário. Os que são intolerantes não servem para ser governantes. Por isso nós podemos ser um fator importante nesse pêndulo. Hoje a maioria dos candidatos que têm ganho eleição majoritária ganha ou com a nossa participação e presença, ou não nos ofendendo. É um detalhe importante e nós temos que saber aproveitar este tipo de expressão política que nós conseguimos. Ainda não temos força em termos de liderança parlamentar, mas temos em termos de opinião mesmo não sendo a maioria da população. Há candidatos que nós apoiamos e que não falam de nós, pois, querem apoio silencioso, e isto nós devemos observar, mas mesmo assim a situação política pode nos ser favorável em certos aspectos.

O senhor tem uma grande preocupação com o crescimento das igrejas neopentecostais em nosso país, mas se relaciona muito bem com as igrejas protestantes tradicionais. Por que o senhor acredita que os neopentecostais são a maior ameaça à pluralidade, à diversidade e aos Direitos Humanos?

Eu não sou contra o crescimento dos neopentecostais. Eles podem ser o que eles quiserem. Eu não sou contra um segmento religioso crescer como segmento religioso. Eu sou contrário às agendas que eles querem impor à sociedade brasileira. Eu sou contra a agenda do ódio, da perseguição, e da agenda de negar os direitos dos outros segmentos. Isto é contra os Direitos Humanos. Agora temos o exemplo dessa mentira de achar que a redução da maioridade penal resolve o problema da criminalidade. A disseminação do ódio é ruim e eles querem usar o Estado para isso. O que me preocupa é que isso é uma semente para o fascismo e isso é um perigo não apenas para nós, mas para toda a sociedade. Primeiro vão (sofrer) a Umbanda e o Candomblé, mas depois vão os outros. Vai atingir a liberdade religiosa, a liberdade política e tudo o mais. Alguns segmentos neopentecostais (não são todos) têm um projeto extremamente fascista. De nossa parte estamos abertos ao diálogo com todos os grupos, inclusive os neopentecostais, sem exceção.

Estamos próximos de ver um Brasil mais tolerante como o senhor gostaria que fosse, ou o caminho ainda é longo para que isso venha ocorrer?

Eu não diria um Brasil tolerante, eu diria um Brasil respeitoso. Essa é a questão, pois, nós não temos que ser tolerados, nós temos que ser respeitados. E acho que isto está longe de ser realidade, pois, infelizmente a sociedade, por alguma conveniência, tem se dado a esse discurso conservador, preconceituoso e fascista. Basta ver os resultados eleitorais proporcionais recentes e o que acontece no Congresso Nacional, mas acredito na força do povo brasileiro e no diálogo. O Brasil tem imagem de diálogo, de convivência e de respeito, e é preciso trabalhar para que isto não seja só uma imagem. No nosso caso, somos um grupo minoritário que está fazendo uma aliança ampla na sociedade e que tem de ter força para barrar esse fascismo no Brasil. Esta é a esperança.

Última atualização da matéria foi há 2 anos


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