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Jessé: viveu (e morreu) em alta velocidade

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Há artistas que vivem como se o palco fosse o próprio coração pulsando, e há os que morrem como se a pressa fosse a última nota de uma canção. Jessé Florentino Santos, o homem de voz monumental que transformou “Porto Solidão” em hino melancólico de uma geração, pertenceu às duas categorias. Sua vida foi uma corrida em ritmo allegro, e seu fim, um trágico fortíssimo em 190 km/h. Não foi apenas a curva da estrada que o derrubou: foi o choque entre talento puro e um país que raramente sabe acolher os seus intérpretes mais autênticos.

Nascido em Niterói, criado em Brasília e revelado ao mundo nos palcos paulistanos, Jessé foi um fenômeno sem o devido reconhecimento. A potência de sua voz — uma das mais expressivas da MPB — ecoava em contraste com o silêncio ingrato da crítica e da indústria fonográfica. Enquanto a Globo exibia seu “Porto Solidão” no Fantástico, a elite musical torcia o nariz para aquele cantor que parecia “popular demais” para os refinados e “sofisticado demais” para os populares. A história de Jessé é, portanto, também a história do limbo artístico brasileiro — esse espaço em que os gênios sem grife morrem, às vezes literalmente, no volante.

“No fim, Jessé talvez tenha sido um desses raros artistas que viveram em desacordo com o tempo. Enquanto o Brasil se adaptava à pasteurização sonora dos anos 90, ele insistia na pureza da emoção.”

Nos anos 80, ele foi o retrato de uma geração que ainda acreditava no poder do festival, do microfone e da emoção à flor da pele. Venceu o Festival MPB Shell, encantou multidões, e mesmo assim, quando a década seguinte chegou, encontrou portas semiabertas. A indústria queria o “sertanejo urbano”, o pop meloso, o modismo fácil.

Jessé, intransigente com a própria arte, recusou-se a se dobrar. Criou seu próprio selo, desafiou as gravadoras e seguiu cantando o que sentia — gesto corajoso que, como tantos no Brasil, custou caro.

O artista que voava demais

Na vida e na arte, Jessé tinha pressa. Pressa de cantar, de gravar, de viver. Não é à toa que sua canção mais famosa chama-se Voa Liberdade. O problema é que, fora do estúdio, essa ânsia de velocidade se traduziu em outra forma de voo — um tanto mais perigosa. Dirigir a quase 200 km/h num Ford Escort XR3 conversível pode parecer, a quem o amava, um capricho de rockstar tardio. Mas, no fundo, era coerente com seu temperamento: Jessé era movido pela intensidade.

A tragédia de 1993, na estrada entre Ourinhos e Terra Rica, interrompeu uma carreira que ainda tinha fôlego para reinventar-se. Aos 40 anos, ele era jovem demais para morrer, mas velho o bastante para saber que o mercado o havia deixado para trás. Sua esposa grávida sobreviveu, mas perdeu a filha — um símbolo cruel de uma vida que se esvaiu antes de poder renascer.

E há algo de profundamente brasileiro nesse fim. O homem que cantava “porto solidão” morreu só, dentro de um carro veloz, tentando chegar ao próximo show. A mesma indústria que o ignorava continuava, naquela noite, tocando suas músicas em rádios do interior. A morte, para Jessé, não foi apenas física: foi o encerramento de um ciclo de incompreensão artística, de exílio dentro do próprio país que o aplaudiu pela TV e o esqueceu nos discos.

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Nos bastidores da música, sua voz era vista como “grande demais” para caber nos moldes comerciais. E quando um artista canta com o peito aberto num ambiente tão afeito ao cálculo, não é raro que o mundo o empurre para fora da pista — ou, no caso de Jessé, que ele mesmo pise fundo até o limite.

Há, porém, uma ironia bonita nesse drama: o homem que voava demais continua voando. Sua obra resiste nas rádios nostálgicas, nos vídeos resgatados por fãs, e no coração daqueles que ainda valorizam a canção como instrumento de verdade emocional. Sua interpretação de Porto Solidão é um monumento à vulnerabilidade humana — aquele tipo de performance que não se ensina, não se imita, apenas se sente.

No fim, Jessé talvez tenha sido um desses raros artistas que viveram em desacordo com o tempo. Enquanto o Brasil se adaptava à pasteurização sonora dos anos 90, ele insistia na pureza da emoção. Quando o país se rendia ao modismo sertanejo, ele fundava uma gravadora independente. E quando o show business exigia cálculo, ele entregava alma. A estrada o levou, mas o eco de sua voz ainda paira — firme, solitária, livre.

É quase poético, embora trágico, que aquele que cantou sobre liberdade tenha morrido em busca dela, no limite da velocidade. Jessé, o homem de timbre raro e olhar introspectivo, tornou-se mais do que um cantor esquecido: tornou-se um símbolo de como o Brasil trata seus artistas genuínos — com aplauso rápido e memória curta.

O Ford Escort XR3 conversível do talentoso cantor Jessé após o acidente fatal (Foto: Wiki)
O Ford Escort XR3 conversível do talentoso cantor Jessé após o acidente fatal (Foto: Wiki)

Se o acidente de 1993 foi o ponto final, a verdade é que sua música permanece em reticências. E talvez seja isso o mais bonito: mesmo morto, Jessé ainda desafia o silêncio da mediocridade nacional.


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