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Morte e Vida Severina: muitos simbolismos

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A literatura brasileira carrega, às vezes, a capacidade quase mística de transformar dor em arte, e Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, é um exemplo exemplar dessa alquimia. A obra, publicada originalmente em 1955, transcende o simples registro da vida nordestina: ela é um mergulho profundo na dureza do sertão, onde a escassez de água e alimento transforma a existência em uma coreografia diária de sobrevivência e resignação. Mas, para Cabral, o sertão não é apenas cenário: é protagonista, ator silencioso que molda destinos com mãos de pedra.

O texto, em forma de cordel, acompanha Severino, retirante que atravessa o sertão à procura de uma vida minimamente digna. Cada verso carrega a cadência da marcha lenta, quase ritual, de quem carrega não só o corpo, mas também o peso histórico da fome, da injustiça e do abandono social. A narrativa é econômica, quase cirúrgica, como a própria água que falta nos açudes. Não há floreios desnecessários; cada palavra tem função, cada pausa carrega silêncio, cada rima é martelo batendo no asfalto rachado do sertão.

“É curioso notar que, apesar de todo o pessimismo, há espaço para lirismo. A beleza das imagens criadas por Cabral, seja a água que some, seja o sol que castiga, seja o próprio Severino caminhando sem parar, traz uma dimensão estética que transcende a crueza da narrativa.”

O simbolismo é o verdadeiro motor da obra. Severino, com seu nome genérico, não é apenas um indivíduo: ele é todos os retirantes, todos os marginalizados, todos os invisíveis da sociedade brasileira. Sua jornada é uma metáfora potente da migração forçada, da luta pela sobrevivência, mas também da resistência. Cabral consegue, em versos curtos, transmitir a sensação de que a vida e a morte caminham lado a lado, e que o cotidiano do sertão é um eterno jogo de equilíbrio entre esperança e desespero.

Além disso, há uma crítica social feroz embutida nos simbolismos. O sertão é um palco de abandono institucional: a seca é impiedosa, mas nada se compara à negligência humana que perpetua desigualdades. Cada gesto, cada cena relatada, denuncia uma sociedade que olha para o sofrimento como se fosse espetáculo distante, algo que não exige envolvimento, apenas contemplação superficial. Cabral, com sua precisão formal e literária, consegue transformar denúncia em arte sem precisar levantar bandeiras explícitas — e isso é parte do seu gênio.

Entre a fome e a fé

A religiosidade presente na obra não é casual; ela é estratégica. A morte e a vida de Severino dialogam com a simbologia cristã, mas de forma profundamente brasileira. A travessia do sertão, a luta contra a seca e a pobreza, e o encontro com a morte de inocentes remetem a uma Paixão nordestina, onde a esperança e a se misturam com o cansaço e a resignação. Cabral constrói uma ponte entre o profano e o sagrado, mostrando que a fé não alivia a fome, mas oferece uma narrativa de sentido para o sofrimento. A vida de Severino é marcada por contrastes: a alegria efêmera de encontros humanos, o consolo temporário da fé e a brutalidade inevitável da realidade.

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É curioso notar que, apesar de todo o pessimismo, há espaço para lirismo. A beleza das imagens criadas por Cabral, seja a água que some, seja o sol que castiga, seja o próprio Severino caminhando sem parar, traz uma dimensão estética que transcende a crueza da narrativa. É um lirismo seco, áspero, mas não menos poético — uma poesia que se aproxima do barro do sertão, da poeira levantada pelos passos dos retirantes, da dureza que forma caráter e memória coletiva.

Outro ponto interessante é a estrutura formal: o cordel, tão popular e acessível, aqui se torna veículo de erudição e complexidade. Cabral manipula o gênero com maestria, conseguindo falar simultaneamente para o povo e para os acadêmicos. A obra é, portanto, um ato de democratização da literatura e, ao mesmo tempo, de afirmação de seu caráter crítico. É raro ver uma obra que consegue ser tão rigorosa no formal e tão ampla no simbólico.

O texto, em cordel, acompanha Severino, retirante que atravessa o sertão (Foto: Wiki)
O texto, em cordel, acompanha Severino, retirante que atravessa o sertão (Foto: Wiki)

Morte e Vida Severina continua atual porque toca em questões estruturais que ainda persistem. A seca não é apenas meteorológica; é social, política e econômica. O retirante que Severino representa ainda existe, em diferentes formas e contextos, em várias regiões do Brasil. A obra permanece relevante porque nos obriga a confrontar as contradições de nossa história e de nossa sociedade: a fome e a riqueza, a negligência e o heroísmo cotidiano, a vida e a morte. Cabral nos oferece, assim, não apenas poesia, mas reflexão, denúncia e, sobretudo, consciência crítica — tudo embalado em versos que seguem marchando, incansáveis, pelo sertão da nossa própria memória coletiva.


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