A caótica origem da Estátua da Liberdade
Na superfície, a Estátua da Liberdade é um dos maiores ícones dos Estados Unidos. Erguida sobre a Ilha da Liberdade, em Nova York, a figura feminina que segura a tocha foi exaltada como símbolo de liberdade, democracia e acolhimento. Mas, como quase tudo que brilha com o verniz da história oficial, a origem do monumento é muito mais turbulenta do que os livros escolares deixaram transparecer. De nobre, só a intenção. O resto foi improviso, disputa política, vaquinha pública e muita propaganda.
O ano era 1865 quando o jurista e abolicionista francês Édouard René de Laboulaye teve a ideia: presentear os Estados Unidos com uma estátua monumental para celebrar o centenário da independência americana (1776). Em sua cabeça, o gesto seria um aceno à república e à abolição da escravidão — esta última, recém-conquistada nos EUA. Mas também havia uma segunda intenção: usar o gesto para criticar, indiretamente, o regime autoritário do imperador Napoleão III na França. Um presente com alfinetada diplomática embutida.
“Ao longo de sua história, a Estátua da Liberdade passou por tantas reformas que hoje é quase um Frankenstein de bronze e cimento. A estrutura interna, projetada por Gustave Eiffel (o mesmo da torre), teve de ser reforçada inúmeras vezes.”
A execução do projeto caiu nas mãos do escultor Frédéric Auguste Bartholdi, um artista ambicioso que via ali a chance de sua vida. No entanto, a megalomania do projeto logo entrou em conflito a realidade econômica da época. A construção da estátua — inicialmente chamada de “A Liberdade Iluminando o Mundo” — foi um caos financeiro. A França, atolada em crises, mal conseguia bancar sua parte. Os Estados Unidos, ainda em processo de reconstrução pós-Guerra Civil, tampouco mostraram entusiasmo. Resultado? Um festival de rifas, bailes beneficentes, jantares, campanhas em jornais e apelos a milionários.
A situação beirou o ridículo. Em Paris, o braço com a tocha foi exibido em feiras para arrecadar fundos. Nos EUA, o pedestal virou um problema tão grande que Joseph Pulitzer — sim, o dono do famoso prêmio — usou seu jornal para fazer um apelo nacional, cobrando os ricos por sua avareza e exaltando os pobres por suas contribuições modestas. O apelo funcionou. De tostão em tostão, o pedestal saiu. Mas já era 1886. O presente chegou com dez anos de atraso.
Entre deuses, musas e cimento rachado
Embora vista como símbolo da acolhida aos imigrantes, a Estátua da Liberdade nasceu impregnada de contradições. Sua figura feminina, inspirada tanto em deusas greco-romanas quanto em camponesas francesas, foi pensada como alegoria da liberdade, mas não deixou de carregar um quê colonial. A tocha, símbolo da iluminação, tinha um propósito político claro: afirmar a superioridade do modelo ocidental — leia-se Europa e Estados Unidos — sobre o “resto do mundo”.
E há mais. Muitos historiadores apontam que Bartholdi teria se inspirado em figuras árabes e egípcias vistas em sua viagem ao Egito para moldar o rosto e os traços da estátua. O projeto inicial, segundo alguns registros, era criar uma figura colossal semelhante ao Colosso de Rodes para o Canal de Suez, o que nunca se concretizou. Assim, a “egípcia de cobre” acabou reaproveitada para a América. A “liberdade” que chegou aos EUA, portanto, talvez tenha nascido como uma ideia reciclada.
Mais picante ainda é a crítica sobre sua funcionalidade. Ao longo de sua história, a Estátua da Liberdade passou por tantas reformas que hoje é quase um Frankenstein de bronze e cimento. A estrutura interna, projetada por Gustave Eiffel (o mesmo da torre), teve de ser reforçada inúmeras vezes. A tocha original foi substituída por outra em 1986, porque a primeira vazava e ameaçava a estrutura. O símbolo da liberdade quase caiu por infiltração.
E se há liberdade, ela nunca foi plenamente para todos. Nos anos em que a Estátua foi erguida, os EUA endureciam sua política de imigração e mantinham milhões de afro-americanos à margem da cidadania. A estátua olhava para o mar com sua tocha, enquanto o país, por dentro, ainda afundava em segregação racial e exclusão social. Era o farol aceso numa casa sem luz.
Por fim, é curioso que o ícone mais popular dos Estados Unidos seja, de fato, francês. Um presente incômodo, construído com dinheiro arrancado do povo, por um artista frustrado, sustentado por vigas corroídas e que virou sinônimo de liberdade mesmo sem tê-la plena em sua própria gênese.

Quando discursos sobre liberdade voltam a ser usados com cinismo para justificar censura, autoritarismo ou xenofobia, talvez seja hora de encarar a Estátua da Liberdade pelo que ela sempre foi: uma bela alegoria, cheia de rachaduras e contradições, muito mais símbolo do que realidade. Um espelho de bronze para as ilusões de um império.
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