Superalimentos: ciência ou marketing?
Há algo quase religioso no modo como certos alimentos ganham fama repentina. Hoje é a chia; amanhã, a cúrcuma; depois de amanhã, algum pó verde-fluorescente que custa metade do salário mínimo e promete “desinflamar a alma”. A lógica é sempre a mesma: um ingrediente ancestral, resgatado de algum povo misticamente saudável, reaparece embalado em potes minimalistas, com rótulos que dão a entender que, se você ingerir aquilo, imediatamente terá mais energia, menos estresse e, quem sabe, até resolverá seus boletos. A cultura dos chamados “superalimentos” só cresce — e, como quase tudo que cresce rápido demais, merece um olhar mais desconfiado do que devocional.
O apelo é compreensível. Quem não quer comer alguma coisa que supostamente reduz riscos de doenças, melhora o humor e ainda ajuda a manter o peso sob controle? É tentador acreditar que existe um atalho nutricional que compensará os excessos do mundo moderno. Vivemos conectados, cansados, hiperestimulados — e, no meio disso, surge a promessa de que o corpo pode ser domado com uma colher de goji berry ou um shot matinal de spirulina. É a alquimia contemporânea: trocamos o chumbo da vida desorganizada pelo ouro da pseudo-longevidade instantânea.
“O contraste é cruel. De um lado, consumidores discutindo se o açaí orgânico biodinâmico tem mais “frequência vibracional”; de outro, gente lutando para colocar arroz e feijão na mesa. O superalimento, no fim das contas, é menos sobre nutrição e mais sobre privilégio — um luxo travestido de cuidado.”
Mas, como sempre, a ciência é menos excitante do que os slogans. Muitos dos estudos usados para promover superalimentos são preliminares, feitos em laboratório, com doses irreais para um ser humano comum. Outros nem chegam a ser estudos: são interpretações generosas — para não dizer criativas — de dados incompletos. A indústria do bem-estar descobriu que basta um único paper tímido para transformá-lo em manchete: “Alimento X comprovadamente melhora Y”. Comprovadamente, note-se, é quase sempre um exagero, mas quem é que vai clicar em um link que diga “Efeito moderado, limitado e dependente de múltiplos fatores?” Marketing é sobre fantasia; ciência é sobre limites. No embate entre as duas, adivinhe quem vence.
Outra questão raramente mencionada é que não existe comida isolada capaz de transformar o estado de saúde de alguém. Nutrição é contexto. Uma dieta equilibrada continua sendo mais eficiente do que qualquer ingrediente miraculoso importado da Ásia, da Amazônia ou de algum interior mítico da Islândia. O problema é que equilíbrio não dá likes. Mas um “superalimento” — essa mistura de exotismo, promessa e aura espiritual — esse dá.
O hype que alimenta mais narrativas do que gente
A ascensão desses produtos também conversa com o desejo contemporâneo por identidade. Hoje, comer é performar: exibir pureza, disciplina, consciência planetária. O pote de superfood, mais do que alimento, é símbolo. A pessoa que carrega matcha na bolsa se sente parte de uma tribo superior — a tribo dos iluminados por clorofila. E poucas coisas vendem tão bem quanto a sensação de superioridade moral.
Claro, há alimentos com propriedades nutricionais excelentes: mirtilo é de fato rico em antioxidantes; linhaça realmente ajuda na saúde intestinal; cúrcuma possui compostos anti-inflamatórios. Mas nada disso justifica transformar ingredientes comuns em amuletos nutricionais. O exagero é a parte mais lucrativa: vender o extraordinário num pacote pequeno. O capitalismo da saúde descobriu que, se colocar a palavra “super” na frente, o preço pode triplicar sem que a clientela pisque.
Enquanto isso, populações inteiras seguem enfrentando problemas básicos de alimentação: fome, baixa diversidade alimentar, acesso limitado a frutas e verduras. O contraste é cruel. De um lado, consumidores discutindo se o açaí orgânico biodinâmico tem mais “frequência vibracional”; de outro, gente lutando para colocar arroz e feijão na mesa. O superalimento, no fim das contas, é menos sobre nutrição e mais sobre privilégio — um luxo travestido de cuidado.
Também há a contradição ecológica. Muitos superalimentos se tornam tão populares que sua demanda cresce de forma insustentável, prejudicando agricultores locais, inflacionando preços e criando monoculturas que prejudicam ecossistemas inteiros. A quinoa foi um caso emblemático: quando virou febre no Ocidente, comunidades andinas viram seu alimento básico ser exportado a preços absurdos, enquanto o lucro efetivo ficava nas mãos de intermediários. É o velho extrativismo gourmet revestido de discurso saudável.
Em meio a tudo isso, a pergunta fundamental se impõe: vale a pena? A resposta depende do que se espera. Se você gosta do sabor, ótimo. Se usa moderadamente, dentro de uma dieta variada, nada contra. Mas acreditar que esses alimentos possuem poderes quase sobrenaturais é cair na mesma armadilha que historicamente nos levou a comprar desde poções mágicas até aparelhos “vibrotonizantes”. A diferença é que agora o fetiche vem orgânico e com selo cruelty-free.

O caminho mais sensato talvez seja abandonar a ideia de “super” e voltar ao básico. Verdades simples, porém pouco glamourosas: comer comida de verdade, diversificar ingredientes, evitar excessos, cozinhar mais. A ciência continua insistindo nisso — e, curiosamente, isso é o que menos vira manchete. Porque dá trabalho, porque não tem aura, porque não cabe em um potinho de 150 gramas vendido por 89 reais. Superalimentos são ótimos… para quem os vende. Para quem consome, continuam sendo só alimentos — nada mais, nada menos.
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