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Sincericídio ou preconceito à moda ariana?

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Há um tipo de sinceridade que o diplomata moderno deveria guardar trancada a sete chaves — de preferência em algum gabinete insonorizado, longe de microfones, jornalistas e, sobretudo, do algoritmo faminto das redes sociais. Friedrich Merz, chanceler alemão, aparentemente esqueceu esse detalhe básico. Em um daqueles arroubos de espontaneidade que só homens públicos muito experientes — ou muito confiantes em si — ousam ter, soltou a frase que incendiou Belém, Brasília e Berlim: os jornalistas que o acompanhavam “ficaram contentes” de deixar a capital paraense.

Claro, a frase veio embrulhada em contexto, papel de presente que porta-vozes sempre tentam reutilizar: era cansaço, era o voo noturno, era a saudade de casa. Nada mais humano que querer sua própria cama, seu próprio banheiro, seu próprio café que não tem cheiro de tucupi. E, no entanto, há algo na expressão “daquele lugar onde estávamos” que soa menos como um desejo de retorno ao lar e mais como a sobrancelha erguida de quem compara o “mundo tropical” à lisura ordeira da Renânia. A diplomacia é feita de tons — e Merz tocou a nota errada numa escala sensível.

“Também é curioso notar que Merz, em plena COP30, transformou Belém em contraponto para enaltecer as belezas da Alemanha. É como ir a um casamento e elogiar sua própria casa. Diplomacia não é apenas o que se diz — é o que não se diz. E, neste caso, o silêncio teria servido melhor.”

O porta-voz do governo alemão correu para apagar o incêndio — e, como todo bom bombeiro político, acabou soprando a brasa. Garantiu que a impressão de Merz sobre a viagem foi “muito positiva”, que o Brasil é parceiro relevante, que a fala foi “apresentada de forma incriminatória”. A narrativa oficial parecia pedir ao público uma gentileza improvável: que todos concordassem que o que foi dito não é exatamente o que foi ouvido. O velho truque da hermenêutica de ocasião.

Mas se algo caracteriza a opinião pública atual é justamente sua incapacidade de aceitar explicações tardias. Uma frase mal colocada vira símbolo; um tropeço linguístico vira prova de tese; um comentário ambíguo vira diagnóstico cultural. A fala de Merz caiu como munição para quem vê na Europa — especialmente na Alemanha — uma altivez camuflada, uma nostalgia de centralidade, um resquício das velhas hierarquias coloniais que insistem em sobreviver na linguagem.

Entre gafes diplomáticas e sombras históricas

No Brasil, o impacto foi imediato. O prefeito de Belém, Igor Normando, classificou a fala de “infeliz, arrogante e preconceituosa”. Lula, no Tocantins, devolveu com a elegância agressiva que lhe é própria: sugeriu que Merz deveria ter provado a culinária paraense e se embrenhado na cultura local — porque, afinal, “Berlim não oferece 10% da qualidade” do Pará. Pode ser exagero retórico, mas é o tipo de exagero que faz sentido quando alguém resolve tratar o Norte brasileiro como um intervalo indesejado.

E, convenhamos, o episódio expõe algo maior que uma simples troca de farpas. Há um desequilíbrio na gramática das relações internacionais: quando um líder europeu fala sobre o Brasil, o mundo escuta com atenção acadêmica; quando o Brasil responde, se presume sensibilidade excessiva. É quase um reflexo condicionado — fruto de séculos em que a palavra vinda do norte do Equador valia como doutrina e a do sul como exotismo. No mínimo, Merz tocou num nervo.

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Resta saber se o chanceler realmente acreditava estar sendo apenas espirituoso ou se foi traído pelo que Freud chamaria de “ato falho geopolítico”. A metáfora do retorno feliz à Alemanha sugere uma comparação involuntária — e desnecessária — que ecoa aquela velha percepção europeia de superioridade ambiental, urbana e civilizatória. Não é preciso acusá-lo de preconceito explícito; basta reconhecer que existe um repertório cultural que organiza o mundo em centros e periferias.

Também é curioso notar que Merz, em plena COP30, transformou Belém em contraponto para enaltecer as belezas da Alemanha. É como ir a um casamento e elogiar sua própria casa. Diplomacia não é apenas o que se diz — é o que não se diz. E, neste caso, o silêncio teria servido melhor.

Por outro lado, também há uma crítica útil a fazer ao nosso reflexo inflamatório. Há um imediatismo no Brasil contemporâneo que transforma qualquer comentário atravessado em catástrofe moral. Parte da reação vigorosa vem do orgulho ferido — e, quem sabe, de uma insegurança persistente que ainda sentimos quando olhamos para o espelho continental.

O episódio, enfim, não deveria ser sobre medir quem ama mais o próprio país, mas sobre a maturidade de reconhecer que líderes públicos precisam calibrar suas palavras com a precisão de um relojoeiro suíço — ou, se preferirem, de um relojoeiro de Belém, que não deve nada a ninguém. Merz não pediu desculpas. Talvez porque acredite que não errou. Ou talvez porque, na política internacional, desculpar-se às vezes vale mais do que a gafe em si — e ele não quis pagar esse preço.

Merz com Lula. Quando não gostar de algo é melhor fingir que estava gostando (Foto: Wiki)
Merz com Lula. Quando não gostar de algo é melhor fingir que estava gostando (Foto: Wiki)

Resta ao Brasil decidir se prefere guardar o episódio como mágoa ou como oportunidade: a de lembrar ao mundo — e a si — que Belém não é objeto de comparação, mas de respeito. Afinal, nenhuma grande potência deveria se surpreender quando o “lugar de onde estavam saindo” decide que não vai mais aceitar ser enredo exótico de discurso europeu.


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