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A quase quebra do Société Générale

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Em janeiro de 2008, o mundo financeiro ainda saboreava o otimismo pré-crise, e Paris, como sempre, acreditava que seus bancos eram mais elegantes que os de Londres e mais prudentes que os de Nova York. Foi então que o Société Générale, o venerável gigante francês de 150 anos, descobriu que tinha um pequeno incêndio interno — e o bombeiro que deveria apagá-lo era, na verdade, o incendiário. Jérôme Kerviel, um trader de 31 anos com salário modesto e ambições desproporcionais, conseguiu perder cerca de 4,9 bilhões de euros em operações não autorizadas. Um feito que, em escala de desastre, só não superou o colapso do Lehman Brothers.

Kerviel era o oposto do estereótipo do banqueiro ambicioso e arrogante. Filho de um ferreiro e de uma cabeleireira, discreto, sem pedigree nem terno caro, ele parecia inofensivo demais para figurar entre os grandes vilões de Wall Street. Mas talvez tenha sido justamente isso: ninguém prestava atenção demais. Quando finalmente o Société Générale revelou ao mundo o tamanho da catástrofe, parecia o roteiro de um filme ruim — e, de certa forma, era. Um homem só, escondido entre milhões de cliques de teclado, quase levou um dos maiores bancos da Europa à falência.

“Kerviel, hoje, vive à margem do sistema que o devorou. Tornou-se uma figura quase filosófica, denunciando a hipocrisia das finanças e posando como mártir da injustiça corporativa. Sua narrativa — parte confissão, parte revanche — serve como espelho distorcido da própria banca francesa.”

O caso Kerviel virou símbolo do colapso moral e técnico de uma era bancária que confiava demais em sistemas e de menos em pessoas. O banco francês dizia não ter percebido as operações fraudulentas — o que, para um leigo, soa tão plausível quanto um hospital não notar que perdeu um paciente. O trader manipulava dados, falsificava ordens e mascarava riscos, tudo dentro de uma estrutura corporativa cega de autossuficiência. E enquanto isso, seus superiores desfrutavam de bônus milionários e jantares de negócios nos salões parisienses, sem imaginar que, nas profundezas do sistema, um funcionário comum estava brincando de roleta russa com bilhões alheios.

A ironia é que o Société Générale, como toda instituição que cultiva um verniz de respeitabilidade, reagiu com indignação moral. Pintou Kerviel como o Lúcifer da contabilidade, o “homem que enganou o sistema”. Mas quanto mais se investigava, mais claro ficava que o sistema se deixara enganar de propósito. A cultura bancária da época recompensava quem arriscava e punia quem era cauteloso. Kerviel era, afinal, o produto de um ambiente que confundia audácia com competência, e ganância com inteligência.

O bode expiatório perfeito

Kerviel virou o bode expiatório ideal para uma instituição desesperada por preservar sua imagem. O banco entregou sua cabeça à justiça e lavou as mãos com a água benta da hipocrisia corporativa. Foi condenado inicialmente a três anos de prisão e a pagar uma multa de 4,9 bilhões de euros — um valor tão absurdo que soava como uma piada de mau gosto. Ele saiu da prisão em menos de cinco meses, e passou a encarnar uma espécie de anti-herói moderno: o pequeno funcionário esmagado pelo peso de uma engrenagem que finge inocência enquanto produz monstros.

O caso provocou discussões intensas sobre controle de risco, ética e a própria natureza das instituições financeiras. Como é possível que um banco global, com milhares de funcionários e sistemas de vigilância sofisticados, não perceba um rombo bilionário em tempo real? A resposta, claro, está no casamento entre arrogância e cegueira. O Société Générale acreditava demais na sua reputação, e pouco nas engrenagens humanas que a sustentavam. Kerviel apenas acendeu a luz num porão que já estava cheio de rachaduras.

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Curiosamente, o colapso não destruiu o banco — pelo menos não de imediato. O Estado francês correu para garantir a estabilidade do sistema, e o mercado, por puro instinto de autopreservação, tratou o caso como uma “anomalia”. Mas o dano simbólico foi profundo. O nome Société Générale passou a carregar uma sombra: a lembrança de que um império financeiro pode ser derrubado por um único funcionário entediado.

Kerviel, hoje, vive à margem do sistema que o devorou. Tornou-se uma figura quase filosófica, denunciando a hipocrisia das finanças e posando como mártir da injustiça corporativa. Sua narrativa — parte confissão, parte revanche — serve como espelho distorcido da própria banca francesa. Enquanto os executivos voltaram a seus bônus e jantares, o ex-trader foi condenado à eterna lembrança de que ousou jogar o jogo dos poderosos e perdeu.

O caso do Société Générale é, em última instância, uma parábola sobre o capitalismo moderno: um sistema que fabrica heróis até o dia em que eles se tornam inconvenientes. Kerviel foi o espelho quebrado de uma era — e o banco, em vez de olhar o reflexo, preferiu culpá-lo pelo estilhaço.

Kerviel era o oposto do estereótipo do banqueiro ambicioso e arrogante (Foto: France24)
Kerviel era o oposto do estereótipo do banqueiro ambicioso e arrogante (Foto: France24)

O episódio de 2008 não foi apenas uma falha técnica ou um crime isolado. Foi uma exposição pública da fragilidade de um sistema que confunde vigilância com controle, e reputação com virtude. E, ironicamente, foi um lembrete cruel de que, nas finanças globais, os números podem ser frios — mas os erros são sempre humanos.


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