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A diáspora e sua influência no consumo

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Há quem ainda imagine que o ato de consumir é um fenômeno puramente econômico, um movimento de oferta e demanda medido em planilhas, gráficos e relatórios de tendências. Pura ilusão. O consumo é, antes de tudo, uma narrativa identitária. E, quando falamos da diáspora — esse deslocamento humano que mistura sobrevivência e reinvenção —, o consumo deixa de ser apenas compra: vira linguagem, afirmação e, muitas vezes, resistência. As diásporas contemporâneas não apenas mudaram a geografia do mundo, mas também o sabor do café da esquina, o corte da calça jeans e até a playlist do shopping.

Basta observar qualquer metrópole moderna: o sushi virou almoço rápido de escritório, o kebab substituiu o pastel nas madrugadas boêmias, e o funk carioca toca em baladas de Lisboa. A diáspora não se limita mais ao exílio ou à fuga; ela é, também, um vetor de contaminação cultural e mercadológica. Os povos que migram levam consigo seus gostos, crenças e hábitos — e, no caminho, transformam e são transformados. A economia global descobriu cedo que o capital adora fronteiras porosas: o que começa como saudade do tempero da avó vira franquia internacional em poucos anos.

“Há também um lado político nisso tudo. As comunidades diaspóricas passaram a influenciar a cultura de consumo de forma coletiva, criando redes de solidariedade que transcendem o mercado.”

Mas não se trata apenas de nostalgia. O consumo gerado pela diáspora cria novos mercados e redefine padrões estéticos e comportamentais. Marcas que antes vendiam “universalidade” agora tentam vender “autenticidade” — uma palavra que virou fetiche corporativo. O imigrante que antes era tratado como mão de obra barata tornou-se, aos olhos do marketing, um consumidor com poder simbólico. As grandes empresas aprenderam a explorar o orgulho étnico com uma eficiência quase religiosa: vendem “identidade” em parcelas, “pertencimento” em assinaturas mensais e “diversidade” em campanhas cuidadosamente estudadas por publicitários de ternos bem cortados.

Por outro lado, há um curioso paradoxo: o mesmo sistema que se alimenta da diversidade tenta homogeneizá-la. O prato típico vira “gourmet”, o turbante vira “tendência”, e a tatuagem maori é exportada como “estilo”. A diáspora oferece matéria-prima cultural; o mercado, em retribuição, devolve uma versão higienizada e instagramável. É a velha história do capitalismo multicultural: todos são bem-vindos — desde que vendam bem.

Entre a saudade e o algoritmo

A tecnologia, claro, potencializou tudo isso. O imigrante do século XXI não carrega apenas malas, mas também uma conta no TikTok e um PayPal internacional. Plataformas digitais criaram comunidades híbridas, onde o consumo é ao mesmo tempo, expressão e sobrevivência. As lojas virtuais de produtos africanos nos Estados Unidos, os cafés brasileiros em Berlim, os brechós coreanos em São Paulo — tudo faz parte dessa economia da saudade. O comércio eletrônico virou uma extensão emocional do exílio, um modo de manter viva a sensação de pertencimento em meio ao deslocamento.

E os algoritmos sabem disso melhor que ninguém. Eles farejam sotaques, identificam padrões de consumo por região e segmentam anúncios com precisão cirúrgica. Um migrante latino em Paris recebe publicidade de mate, reggaeton e remessas internacionais — uma tentativa de transformar a nostalgia em oportunidade de negócio. A diáspora, nessa lógica, é um nicho de mercado, um público-alvo definido não por classe social, mas por memória e identidade.

Há também um lado político nisso tudo. As comunidades diaspóricas passaram a influenciar a cultura de consumo de forma coletiva, criando redes de solidariedade que transcendem o mercado. A moda afro-brasileira, o rap senegalês, a culinária síria e até o design indígena digital são exemplos de resistência travestida de estética. Cada compra, cada curtida, cada repost é um pequeno gesto de afirmação — uma forma de dizer “estamos aqui, não apenas sobrevivendo, mas moldando o gosto global”.

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Porém, seria ingênuo romantizar. A diáspora continua sendo, em muitos casos, uma experiência de exclusão. O mesmo sistema que lucra com o exotismo do imigrante o marginaliza quando ele tenta ocupar espaços de poder. É o “diversity washing”: celebrar a cultura, mas ignorar o corpo que a criou. Enquanto isso, o mercado finge empatia em campanhas publicitárias que dizem “somos todos iguais”, ao mesmo tempo, em que perpetua desigualdades estruturais e apropriações culturais lucrativas.

No fundo, a diáspora é o espelho desconfortável da globalização: mostra o que ela tem de mais bonito — o encontro — e o que tem de mais cruel — a assimilação disfarçada de inclusão. O consumo diaspórico é, portanto, uma narrativa dupla: por um lado, libertadora; por outro, domesticada.

A diáspora nos ensina que consumir é muito mais do que comprar: é lembrar, pertencer, disputar significado. O pão sírio que você comeu no almoço é uma história de guerra e reconstrução; o turbante que viu na passarela é símbolo de fé e ancestralidade; o som que toca no rádio é fruto de travessias que desafiaram mares e fronteiras. A diáspora transformou o consumo num espelho do mundo — e o mundo, num enorme mercado de memórias.

O consumo gerado pela diáspora cria novos mercados e redefine padrões (Foto: Wiki)
O consumo gerado pela diáspora cria novos mercados e redefine padrões (Foto: Wiki)

E talvez a ironia final seja esta: na era das marcas globais e das identidades líquidas, quem dita as tendências já não é Paris, Nova York ou Milão — é a esquina onde o exilado montou sua barraca, misturando o gosto do passado com o preço do presente.


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