A guerrilha dos Contras da Nicarágua
A história da Nicarágua na década de 1980 é um roteiro tropical de espionagem, ideologia, pólvora e propaganda — tudo com o selo de aprovação de Washington e a assinatura de sangue de uma guerra civil que devastou o pequeno país centro-americano. A chamada “guerrilha dos Contras” foi o braço armado da oposição ao governo sandinista, que havia derrubado a ditadura de Anastasio Somoza em 1979. O sonho de libertação rapidamente se transformou num pesadelo de violência, e o que começou como resistência interna virou um projeto geopolítico cuidadosamente manipulado pelos Estados Unidos, disfarçado de cruzada pela “liberdade”.
Os Contras, formados em grande parte por ex-soldados da Guarda Nacional de Somoza e camponeses desiludidos, receberam armas, treinamento e dólares da CIA. Para Reagan e sua turma, o sandinismo era a encarnação do comunismo à moda cubana, e a Nicarágua, um tabuleiro de xadrez na Guerra Fria. Washington não podia permitir que um governo de esquerda prosperasse no quintal americano — especialmente um que ousasse alfabetizar o povo e distribuir terras. Assim nasceu o movimento “contra-revolucionário”, uma mistura explosiva de nostalgia somozista e pragmatismo imperial.
“O mais curioso é que, décadas depois, o mesmo Daniel Ortega que enfrentou os Contras com discurso revolucionário retornou ao poder — e acabou se tornando um novo tipo de ditador tropical. De guerrilheiro a autocrata, Ortega encarna a ironia suprema da história nicaraguense: o homem que lutou contra a opressão transformou-se em seu espelho.”
A guerra dos Contras foi, acima de tudo, uma guerra suja. Eles atacavam vilarejos, sabotavam infraestruturas e aterrorizavam civis, justificando tudo como luta contra o totalitarismo. A CIA, que à época ainda não dominava o marketing digital, espalhou panfletos e boatos sobre “atrocidades sandinistas”, enquanto manuais de “psicologia de guerrilha” ensinavam técnicas de tortura e intimidação. Nos Estados Unidos, o Congresso chegou a proibir o financiamento direto dos Contras, mas a Casa Branca — no espírito de um bom roteiro de escândalo político — encontrou um atalho: o infame caso Irã-Contras.
Nesse enredo surreal, o governo Reagan vendeu armas ao Irã, país então considerado inimigo, e desviou o dinheiro para bancar os rebeldes nicaraguenses. O episódio, quando revelado, abalou a credibilidade da administração americana e mostrou ao mundo o tamanho da hipocrisia por trás da retórica democrática. Afinal, a liberdade dos povos, quando conveniente, cabia em maletas de dólares e contêineres de munição.
Entre a fé, o fuzil e o fetiche anticomunista
A narrativa dos Contras também teve sua estética particular: heróis camponeses de Bíblia na mão e rifle no ombro, prontos para “salvar” a Nicarágua do ateísmo marxista. A mistura de religião e geopolítica serviu como combustível moral, e muitos pastores evangélicos dos EUA ajudaram a financiar o movimento, transformando a guerra civil em cruzada espiritual. Era a era da “moral majoritária” — e os Contras foram apresentados como os novos cavaleiros de Cristo na América Central.
Mas a realidade era menos épica. A guerra deixou cerca de 30 mil mortos, destruiu aldeias inteiras e mergulhou o país na miséria. O governo sandinista, por sua vez, endureceu, reprimindo dissidências e impondo censura, o que só alimentava a narrativa da Casa Branca de que a Nicarágua era um “Estado policial socialista”. Entre o ideal revolucionário e a paranoia anticomunista, o povo nicaraguense foi esmagado por duas máquinas ideológicas que se alimentavam mutuamente.
Nos anos 1990, com o fim da Guerra Fria e a derrota eleitoral dos sandinistas, os Contras perderam relevância e se dissolveram. Muitos voltaram para a vida civil, outros foram incorporados às forças armadas ou ao crime organizado. O país, cansado e empobrecido, tentou se reconstruir — mas as feridas ficaram abertas. A “democracia” que se seguiu foi uma caricatura, repleta de corrupção e promessas vazias.
O mais curioso é que, décadas depois, o mesmo Daniel Ortega que enfrentou os Contras com discurso revolucionário retornou ao poder — e acabou se tornando um novo tipo de ditador tropical. De guerrilheiro a autocrata, Ortega encarna a ironia suprema da história nicaraguense: o homem que lutou contra a opressão transformou-se em seu espelho.
Hoje, a lembrança dos Contras é um fantasma incômodo. Para uns, foram patriotas; para outros, mercenários a soldo do império. O fato é que, sob o pretexto da “libertação”, a Nicarágua foi usada como campo de testes para a guerra híbrida moderna: desinformação, sabotagem, financiamento irregular e propaganda religiosa — tudo embrulhado em retórica moralista.
Se há algo que a história dos Contras ensina, é que nenhuma revolução está imune à corrupção dos ideais. A Nicarágua virou o exemplo trágico de como a geopolítica devora a ética — e de como, na América Latina, o sonho de liberdade costuma vir com recibo carimbado em Washington. Talvez o único legado verdadeiro dessa guerra seja o cansaço: um povo exausto de ser peão no jogo dos outros.

No fim das contas, a guerrilha dos Contras foi menos uma luta entre bons e maus e mais um teatro cruel de ambições mascaradas. O palco era a selva; o público, o mundo. E, como sempre, o aplauso final coube aos que jamais pisaram no campo de batalha.
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Anacleto Colombo assina a seção Não Perca!, onde mergulha sem colete na crônica sombria da criminalidade, da violência urbana, das máfias e dos grandes casos que marcaram a história policial. Com faro apurado, narrativa envolvente e uma queda por detalhes perturbadores, ele revela o lado oculto de um mundo que muitos preferem ignorar. Seus textos combinam rigor investigativo com uma dose de inquietação moral, sempre instigando o leitor a olhar para o abismo — e reconhecer nele parte da nossa sociedade. Em um portal dedicado à informação com profundidade, Anacleto é o repórter que desce até o subsolo. E volta com a história completa.




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