O estranho início do Sufrágio Universal
Sufrágio Universal. A expressão soa nobre, quase como se fosse um presente da modernidade, um pacto social gravado em mármore. Mas, na prática, o tal “universal” demorou séculos para ser levado a sério — e até hoje carrega asteriscos, ressalvas e contradições dignas de nota de rodapé. A história do voto é a história de exclusões elegantes, de avanços lentos e de uma retórica que sempre chegou antes da prática. Afinal, de que serve falar em “todos” quando os critérios de cidadania já excluíam, sem rubor, mulheres, pobres, negros, indígenas e qualquer outro grupo que não coubesse no molde do poder vigente?
Na Grécia Antiga, por exemplo, o voto era reservado a cidadãos homens, proprietários e livres. Isso eliminava, sem cerimônia, a esmagadora maioria da população: escravos, estrangeiros e, claro, mulheres. Roma não foi muito diferente. As repúblicas medievais italianas até ensaiaram formas embrionárias de participação, mas sempre temperadas pela condição de riqueza. Em resumo, a democracia antiga e renascentista não passava de um clube privado com estatuto rígido.
“Certos regimes “eleitorais” são meros simulacros: urnas existem, mas os candidatos são pré-selecionados pelo poder, transformando o sufrágio em ritual burocrático de legitimidade. O universal, nesses casos, é apenas cosmético.”
O voto “universal” começou a se consolidar no século XIX, e não por generosidade espontânea dos governantes. O motor foi a pressão social, greves, revoluções e mobilizações que rasgavam as ruas de Paris, Londres e Berlim. A França, após a Revolução de 1848, proclamou o Sufrágio Universal masculino. Só masculino, vale frisar. As mulheres continuariam excluídas por quase um século. A Inglaterra, bastião da democracia parlamentar, só universalizou de fato o voto em 1928, quando as mulheres conquistaram igualdade de direitos com os homens. O berço da liberdade demorou a abrir as portas para metade da população.
Na América, os Estados Unidos proclamaram cedo a ideia de voto amplo, mas a escravidão e, depois, as leis segregacionistas transformaram essa promessa em caricatura. O sufrágio negro só foi garantido na prática depois de lutas titânicas do movimento pelos direitos civis nos anos 1960. O Brasil, por sua vez, teve uma trajetória igualmente torta: primeiro com eleições censitárias no Império, depois com o voto “universal masculino” da República Velha, sempre controlado por coronéis. Só em 1932 as mulheres puderam votar, e mesmo assim com restrições iniciais.
A difícil expansão da palavra “universal”
Hoje, o Sufrágio Universal é norma em praticamente todo o planeta. Mas “universal” ainda significa coisas distintas em diferentes contextos. Há países onde votar é dever obrigatório (como no Brasil e na Austrália) e outros onde é facultativo (como nos Estados Unidos). Em democracias estáveis da Europa, como França e Alemanha, o voto é amplamente acessível, mas partidos populistas testam os limites do sistema. Em nações africanas, asiáticas e latino-americanas, a conquista do sufrágio se mistura a processos de descolonização e ditaduras, muitas vezes interrompidas por golpes de Estado que tratavam o voto como ameaça.
Curiosamente, ainda no século XXI, há exceções gritantes. Arábia Saudita, até 2015, proibia as mulheres de votar. Em outros reinos do Golfo, a participação política segue restrita. Certos regimes “eleitorais” são meros simulacros: urnas existem, mas os candidatos são pré-selecionados pelo poder, transformando o sufrágio em ritual burocrático de legitimidade. O universal, nesses casos, é apenas cosmético.
Não deixa de ser irônico notar que países tidos como símbolos da democracia demoraram séculos para alcançar o que hoje consideramos básico. E mesmo agora, há mecanismos de exclusão sutis: a exigência de documentos caros, o fechamento de zonas eleitorais em áreas pobres, a proibição de voto a presos ou ex-presidiários em determinados lugares. A universalidade, portanto, ainda está em disputa.
E aqui entra o detalhe satírico: se o voto é a arma do povo, como tanto se repete, trata-se de uma arma frequentemente enferrujada, com a mira alterada e o gatilho emperrado. Não surpreende que muitos cidadãos, diante da ineficácia das promessas, tratem o sufrágio não como conquista sagrada, mas como um rito cívico mecânico, tão inspirador quanto pagar imposto de renda.
No fundo, o voto sempre foi um jogo de poder travestido de direito. A história do Sufrágio Universal é a história de elites cedendo migalhas à medida que a pressão social ameaçava virar incêndio. O povo nunca recebeu nada de presente: conquistou à força, com suor, sangue e às vezes até bala. A cada conquista, o adjetivo “universal” foi ganhando densidade, mas nunca sem resistência.

Falar de sufrágio universal deveria ser mais que comemorar a possibilidade de ir às urnas. É discutir se esse instrumento, conquistado a duras penas, ainda cumpre o que promete. Porque se o voto é universal, mas o poder segue concentrado, talvez estejamos apenas trocando a antiga exclusão explícita por uma democracia de ilusão. E nada é mais estranho do que chamar isso de universal.
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