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Um calendário cultural para inquietas

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Há quem diga que a cultura não tem gênero, mas basta abrir qualquer programação oficial de teatro, cinema, literatura ou música para perceber que ela continua sendo montada por homens e para homens, com mulheres chamadas para “ilustrar” a diversidade. É nesse terreno desigual que surge a ideia de um calendário cultural pensado para mulheres inquietas – não aquelas resignadas que aceitam o que lhes é dado, mas as que exigem espaço, voz e protagonismo. A palavra inquietude aqui não é defeito; é combustível.

A cada mês, um evento, uma curadoria, uma provocação: de festivais de cinema dirigidos por mulheres até exposições de artistas visuais que não cabem nos estereótipos de feminilidade que a publicidade adora reforçar. A ideia é simples e, justamente por isso, perigosa para o status quo: organizar a cultura não mais como um suplemento, mas como o prato principal, deixando de lado a lógica de que “mulher artista” é categoria paralela. O problema é que, quando se institucionaliza um calendário, corre-se o risco de criar uma nova vitrine excludente, apenas invertendo o polo de dominação.

“Seria ingênuo, porém, achar que basta abrir espaço e o público feminino se multiplicará magicamente nas plateias. O hábito cultural também foi moldado para ser masculino: os horários das sessões, os preços dos ingressos, a falta de segurança nas ruas após espetáculos noturnos.”

A grande provocação, então, não é só programar, mas redefinir o que se entende por cultura. O calendário para mulheres inquietas não pode ser apenas um repositório de palestras feministas em auditórios vazios ou de sessões de cinema europeu às dez da manhã de quarta-feira. Precisa entrar na carne da cidade, ocupar ruas, praças e até mesmo bares — esses espaços ainda fortemente masculinizados. Caso contrário, vira um apêndice caridoso, um mimo cultural que não mexe na engrenagem real.

E, claro, não adianta apenas empilhar datas em uma agenda bonita e colorida. O desafio é transformar o calendário em uma estratégia de resistência e de mercado. Sim, mercado — porque não há emancipação possível se a lógica financeira continuar ignorando o trabalho das mulheres. É preciso que a inquietude também saiba vender ingressos, captar patrocínios e pautar a imprensa, sob pena de virar só mais uma agenda de nicho que circula entre as mesmas bolhas digitais.

Entre a revolução e a vitrine

O dilema é antigo: como escapar do gueto sem ser engolida pelo mainstream? O calendário cultural para mulheres inquietas corre esse risco. Ao mesmo tempo em que oferece visibilidade, pode virar um carimbo de “programa feminino” que afasta quem insiste em acreditar que a arte feita por mulheres é só para mulheres. Mas talvez a inquietação consista justamente nisso: em viver no atrito, em não se deixar capturar pelas etiquetas fáceis. Melhor ser acusada de “agenda identitária” do que continuar invisível sob a máscara universal do “gênero neutro”, que de neutro não tem nada.

Outro ponto curioso é que esse calendário pode funcionar como radar político. Em tempos de conservadorismos renovados e censuras discretas, mapear o que mulheres estão criando, discutindo e performando é também uma forma de medir a saúde da democracia. Afinal, onde não há mulheres produzindo e circulando cultura, a doença é mais profunda: significa que a cidade inteira respira mal. O calendário, nesse caso, vira termômetro e manifesto.

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Seria ingênuo, porém, achar que basta abrir espaço e o público feminino se multiplicará magicamente nas plateias. O hábito cultural também foi moldado para ser masculino: os horários das sessões, os preços dos ingressos, a falta de segurança nas ruas após espetáculos noturnos. Uma mulher inquieta pode ter curiosidade, mas se não tiver como voltar para casa em paz, a inquietação vira frustração. A democratização cultural passa pela infraestrutura, e não apenas pela curadoria.

Por fim, convém lembrar que nem toda mulher inquieta se reconhece no feminismo acadêmico ou nas estéticas de vanguarda. Muitas preferem o show popular, a literatura romântica, o samba da esquina. O calendário só terá relevância se não confundir inquietude com elitismo cultural. A mulher que dança funk no baile periférico é tão inquieta quanto a que lê Virginia Woolf em cafés conceituais. A inteligência está em não hierarquizar essas experiências, mas em conectá-las, cruzá-las, fazer com que se contaminem mutuamente.

No fundo, um calendário para mulheres inquietas é menos sobre datas (Foto: Freepik)
No fundo, um calendário para mulheres inquietas é menos sobre datas (Foto: Freepik)

No fundo, um calendário cultural para mulheres inquietas é menos sobre datas e mais sobre deslocamentos. Ele desafia a ideia de que a agenda já está pronta, basta escolher. Ao contrário: obriga a repensar o que vale ser celebrado e quem deve estar no centro da celebração. Se feito com coragem, pode ser mais do que um roteiro de lazer — pode se transformar em um manual de insubmissão elegante, algo entre o convite e o manifesto, entre a diversão e a revolução.


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