Como surgiram as primeiras ruas asfaltadas?
Há uma certa poesia no asfalto, ainda que o cheiro quente do piche derretendo não pareça exatamente um convite à contemplação. Para muitos de nós, ruas asfaltadas são tão comuns quanto a luz elétrica ou a água encanada — não pensamos em como chegaram ali, tampouco em quem pagou por elas. Mas, se voltarmos ao início, veremos que o asfalto não nasceu de uma súbita epifania urbanística, mas sim de um longo e tortuoso processo de experimentação, improviso e, claro, de interesses econômicos. A história das primeiras ruas asfaltadas revela muito mais sobre nós do que imaginamos: nossas ambições de velocidade, nossos anseios de ordem e, paradoxalmente, nossa disposição para transformar o espaço público em mercadoria.
O asfalto moderno, tal como conhecemos, começou a se firmar no século XIX, sobretudo nas cidades europeias e norte-americanas. Antes dele, ruas de terra, calçamento de pedra ou paralelepípedos eram a norma. Londres, Paris e Nova York experimentaram materiais diversos — desde blocos de madeira tratada até tijolos vitrificados — numa busca constante por superfícies mais duráveis e menos barulhentas. Mas foi o betume natural e depois o asfalto derivado do petróleo que trouxeram a revolução silenciosa. Paris, em 1854, foi uma das pioneiras na aplicação de asfalto em larga escala, criando o que muitos chamaram na época de “tapetes negros” para carruagens. Pouco depois, as grandes avenidas do barão Haussmann receberam pavimentação asfáltica, sinal de modernidade e também de controle urbano.
“Se olharmos para o Brasil, o enredo se repete com sotaque local. Desde a era JK e o Plano de Metas, a pavimentação foi instrumento de integração territorial e marketing político. “Levar o asfalto” virou sinônimo de progresso, mesmo quando faltavam escolas, hospitais e políticas habitacionais.”
Nos Estados Unidos, a febre do asfalto tomou corpo a partir do final do século XIX. Em 1870, a cidade de Newark (Nova Jersey) pavimentou com asfalto uma de suas ruas principais — considerado o primeiro uso do tipo no país. O grande salto, contudo, viria com o advento do automóvel: Henry Ford e companhia só puderam sonhar com produção em massa porque havia estradas razoavelmente confiáveis para circular. Sem asfalto, sem carros para todos. E sem carros, o próprio conceito de subúrbio norte-americano talvez nunca tivesse existido. A pavimentação, portanto, não foi apenas uma melhoria técnica, mas um vetor de transformação social, econômica e cultural.
Esse caminho asfaltado, entretanto, não foi neutro. Se por um lado a pavimentação trouxe conforto, higiene e rapidez, por outro reforçou desigualdades espaciais. Bairros centrais e áreas ricas foram os primeiros a receber os novos pisos negros; periferias e zonas populares ficaram para depois, quando não relegadas a estradas de barro por décadas. A lógica do asfalto, no fundo, sempre foi também a lógica do poder: quem decide onde a rua será asfaltada decide quem terá acesso ao progresso e quem continuará atolado na lama. E, ironicamente, essa dinâmica persiste até hoje — é só olhar para as metrópoles brasileiras e ver onde a malha viária é caprichada e onde ela inexiste.
Asfalto: modernidade ou fetiche urbano?
É curioso como o asfalto ganhou, no século XX, um status quase mítico. Governos anunciavam quilômetros pavimentados como troféus; prefeitos inauguravam ruas asfaltadas com pompa de chefes de Estado; construtoras e empreiteiras viraram potências políticas. A superfície lisa virou símbolo de civilização, mesmo que, por baixo dela, persistissem problemas estruturais, como saneamento precário, habitação insuficiente e transporte público deficiente. O asfalto, nesse sentido, funcionou como maquiagem urbana: uma camada fina para esconder irregularidades mais profundas.
Na retórica do progresso, o asfalto também legitimou o automóvel como protagonista. Ao priorizar a pavimentação para carros, relegamos pedestres e ciclistas a um papel secundário. Essa escolha técnica e política ajudou a consolidar um modelo de cidade centrado no transporte individual, com todos os custos ambientais e sociais que conhecemos hoje. O “tapete negro” que parecia promessa de futuro se revelou também um caminho de dependência do petróleo e do congestionamento.
Se olharmos para o Brasil, o enredo se repete com sotaque local. Desde a era JK e o Plano de Metas, a pavimentação foi instrumento de integração territorial e marketing político. “Levar o asfalto” virou sinônimo de progresso, mesmo quando faltavam escolas, hospitais e políticas habitacionais. E, assim como nas cidades europeias do século XIX, aqui também os primeiros beneficiados foram as áreas mais ricas. A desigualdade social se imprime no mapa asfáltico: bairros nobres ostentam pavimento impecável enquanto comunidades periféricas convivem com buracos, lama e promessas eleitorais não cumpridas.
Nada disso significa que o asfalto seja um vilão absoluto. Ele revolucionou a mobilidade, reduziu custos de transporte, facilitou a circulação de mercadorias e, em muitos casos, melhorou a qualidade de vida. O problema é o fetiche que criamos em torno dele — um culto que associa asfalto a modernidade sem questionar as prioridades urbanas. O verdadeiro progresso não está apenas em estender quilômetros de estrada, mas em pensar quem se beneficia disso, como se financia essa infraestrutura e quais impactos ela provoca no ambiente e na vida cotidiana.
Hoje, diante de crises climáticas e discussões sobre cidades mais sustentáveis, o asfalto se vê no banco dos réus. Materiais alternativos, pavimentos permeáveis e redesenho de espaços urbanos ganham espaço em nome de mobilidade ativa e redução de ilhas de calor. A mesma superfície negra que foi símbolo de progresso no século XX é, agora, criticada por contribuir para enchentes, poluição e dependência de combustíveis fósseis. A história das primeiras ruas asfaltadas, portanto, não é apenas um capítulo do passado, mas um alerta para o futuro: cada decisão sobre o espaço público é também uma decisão sobre o modelo de sociedade que queremos.

No fundo, o asfalto sempre foi mais do que um piso. Ele é um espelho das nossas escolhas políticas, econômicas e culturais. Foi assim em Paris no século XIX, em Nova York no início do XX e continua sendo em São Paulo, Lagos ou Mumbai no XXI. Talvez a pergunta certa não seja “como surgiram as primeiras ruas asfaltadas?”, mas “para quem elas surgiram?”. A resposta, como o próprio asfalto, é dura, negra e cheia de fissuras — mas essencial para entender o chão que pisamos.
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