Al Gore: um autêntico ambientalista?
Al Gore sempre foi um personagem curioso da política norte-americana. Nascido em 1948, em Washington, D.C., filho de um senador democrata do Tennessee, cresceu entre os corredores do poder e o interior sulista, cultivando desde cedo uma ambição política. Ex-vice-presidente de Bill Clinton, quase-presidente dos Estados Unidos em 2000 — quando perdeu para George W. Bush em uma das eleições mais contestadas da história — e eterno militante das causas ambientais, ele ocupa uma posição híbrida no imaginário coletivo: meio estadista, meio profeta do apocalipse climático. Desde que lançou o documentário Uma Verdade Inconveniente em 2006, Gore passou a ser tratado como uma espécie de Cassandra moderna, anunciando os horrores do aquecimento global enquanto acumulava prêmios, fortunas e críticas. Mas afinal, estamos diante de um verdadeiro ambientalista ou de um político reciclado no mercado verde?
Sua trajetória política é marcada por pragmatismo, mas também por contradições. Enquanto senador e depois como vice-presidente, Gore não foi exatamente um radical verde. Defendia pautas ambientais, sim, mas sempre com a cautela típica de quem não queria se indispor com a indústria e o eleitorado. O ambientalista “full time” só emergiu com força após sua derrota em 2000, quando ficou sem cargo público e pôde abraçar uma bandeira global sem precisar prestar contas a eleitores ou lobistas de Washington. Foi nesse momento que ele se reinventou, transformando-se em celebridade internacional da sustentabilidade, algo entre um Bono Vox da ecologia e um investidor astuto em energias renováveis.
“Os defensores o veem como alguém que transformou um tema restrito à academia em conversa de jantar de família. Os detratores o acusam de ser um moralista conveniente, que só descobriu sua vocação verde quando ficou sem cargo público e precisava de uma nova relevância.”
Esse reposicionamento lhe rendeu reconhecimento. O Oscar pelo documentário, o Prêmio Nobel da Paz em 2007 e a imagem de ícone da luta contra as mudanças climáticas. Mas também trouxe desconfiança. Críticos dizem que Gore é mais empresário do que ambientalista: enquanto denuncia as emissões de carbono, investe em companhias ligadas à energia limpa e lucra com consultorias para governos e corporações que querem parecer sustentáveis. Seria esse o destino inevitável de todo idealista em um mundo governado pelo capital? Ou apenas um golpe de sorte para alguém que percebeu cedo que o futuro seria verde — e lucrativo?
Para muitos, Al Gore tornou-se um símbolo do “capitalismo climático”: aquele em que a tragédia ambiental deixa de ser apenas ameaça e vira oportunidade de negócio. Ele fala de degelo, furacões e secas históricas, mas, ao mesmo tempo, transita em jatos particulares e vive em mansões de alto consumo energético. O homem que pediu ao mundo para apagar a luz atrás de si convive com a suspeita de não praticar no privado o que prega no público. E isso levanta a questão essencial: pode-se ser um autêntico ambientalista quando se está profundamente imerso nos confortos e contradições do sistema que mais polui?
O mito do salvador climático
Al Gore não é o primeiro político a ser elevado à categoria de messias por uma causa. Ele se encaixa numa tradição que mistura marketing, moralismo e pragmatismo. Na sua narrativa, o planeta precisa ser salvo, mas para isso é necessário que governos, corporações e consumidores façam sua parte. O discurso é sedutor porque responsabiliza todos igualmente, diluindo culpas históricas — o que agrada às grandes potências poluidoras e mantém a aura de liderança global de Gore.
A ironia é que, enquanto alerta sobre o fim iminente do mundo, Gore também reforça a crença de que é possível evitar o desastre sem grandes rupturas, apenas com ajustes tecnológicos e investimentos corretos. O colapso climático, segundo ele, pode ser adiado se houver boa vontade. Parece mais promessa de vendedor do que aviso de profeta. E nisso reside a força e a fraqueza de sua figura: Gore mantém o tema em evidência, mas o esvazia de radicalidade, oferecendo soluções “limpas” dentro da lógica do mercado.
Os defensores o veem como alguém que transformou um tema restrito à academia em conversa de jantar de família. Os detratores o acusam de ser um moralista conveniente, que só descobriu sua vocação verde quando ficou sem cargo público e precisava de uma nova relevância. Ambos os lados têm razão. Gore de fato contribuiu para popularizar a discussão sobre o aquecimento global, mas também soube transformá-la em carreira lucrativa.
O que não se pode negar é a habilidade do ex-vice-presidente em manter-se no centro do debate. Enquanto muitos políticos do seu tempo desapareceram no rodapé da história, Gore conseguiu reinventar-se como ícone global de uma das maiores preocupações do século XXI. Mas resta a pergunta: sua militância é fruto de convicção ou conveniência?
Talvez nunca tenhamos resposta definitiva. O certo é que Al Gore encarna a ambiguidade do nosso tempo: um ambientalismo que se quer urgente, mas não consegue escapar dos interesses que o financiam. Ele é, ao mesmo tempo, visionário e pragmático, genuíno e calculista. E talvez seja justamente por isso que continue relevante — porque fala de salvar o planeta sem exigir que abramos mão, de fato, do nosso estilo de vida.

No fim das contas, Al Gore é um autêntico ambientalista? Sim, no sentido em que defende a causa e a populariza. Mas também é um produto do espetáculo político e econômico que molda os nossos heróis. E como todo mito moderno, ele sobrevive não pela pureza de sua mensagem, mas pela capacidade de encenar uma verdade inconveniente que todos preferem ouvir com um toque de esperança.
A arte singular de Beatriz Milhazes
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