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Proxenetas e a dosimetria madrugueira

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A madrugada brasiliense continua sendo o horário nobre das decisões mais tortuosas da República — aquele intervalo insondável entre o fim da novela e o nascer do sol, quando o Congresso parece operar sob uma estética própria, quase barroca, feita de cochilos estratégicos, cafezinhos suspeitos e discursos que oscilam entre o messiânico e o farsesco. Foi nesse cenário — ou nesse teatro de variedades jurídicas — que a Câmara dos Deputados aprovou o projeto da dosimetria, reduzindo penas para condenados pelos atos golpistas de 8 de janeiro. Um placar robusto: 291 votos a favor, 148 contra. Quase um consenso, se considerarmos que a maioria estava com sono demais para sustentar um debate profundo.

O presidente da Casa, Hugo Motta, decidiu que era hora de “virar a página”, expressão que na política brasileira costuma significar apenas dobrar o canto do livro para não perder o lugar. Pautou, insistiu e colocou em votação aquilo que já havia nascido como anistia, crescido como remissão e terminou como uma redução penal calculada com a frieza de um tabelião. Alguns partidos tentaram obstruir, protestaram, espernearam, mas às quatro da manhã até mesmo a resistência mais inflamável vira brasa.

“A dosimetria aprovada de madrugada não é apenas um cálculo jurídico; é um movimento político carregado de símbolos. Reduzir penas para ataques ao Estado Democrático de Direito pode até ser defensável dentro de certos argumentos formais, mas a mensagem cultural é outra: tenta-se, novamente, reescrever a história recente com uma borracha que apaga mais do que corrige.”

O relator, Paulinho da Força, fez o que relatórios fazem quando são submetidos ao calor político: mudaram de forma, mas não de função. O texto, antes um perdão coletivo, virou uma operação matemática curiosa — para não dizer criativa. A ideia é simples: quando houver condenação por tentativa de golpe e ataque ao Estado Democrático de Direito, esses crimes serão analisados no mesmo contexto. Traduzindo: em vez de somar as penas, aplica-se apenas a mais grave. É quase como pagar por um prato e levar o buffet inteiro. Eficiência penal, diriam alguns; complacência institucional, diria quem ainda não perdeu o juízo.

O resultado prático é claro até para quem se perdeu nos números: os grandes nomes do núcleo 1 — Jair Bolsonaro, Augusto Heleno, Anderson Torres, Braga Netto — respiram aliviados. A pena de 27 anos do ex-presidente, por exemplo, cairia pela metade, com promessa de progressão de regime mais rápida do que o tempo de preparo de um miojo. Uma vitória jurídica? Uma manobra para “pacificar o país?” Ou apenas um ajuste político calculado para 2026? O leitor escolha a sua aventura.

A retórica da madrugada

O plenário foi um mosaico de expressões indignadas e discursos de ocasião. O deputado Chico Alencar (PSOL), sempre articulado, chamou o projeto de “farsa da anistia”, denunciando o que definia como um atentado reiterado contra a democracia. Já do lado oposto, o Capitão Alberto Neto (PL) apelou para o mantra da pacificação nacional — essa entidade metafísica frequentemente convocada para justificar concessões generosas aos poderosos. “É um gole de justiça”, disse ele, talvez ignorando que muitos brasileiros, ao invés de gole, sentem gosto de ressaca.

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No fim da sessão, pouco antes dos primeiros pombos acordarem na Praça dos Três Poderes, Hugo Motta cravou o resultado com uma filosofia incomum: “se desagrada a todos, é porque está correto”. Um raciocínio charmoso, mas perigosamente relativista. Se fosse aplicado à gastronomia, justificaríamos comida ruim; se aplicado à política, normaliza o desconforto como se fosse virtude republicana.

O texto agora segue para o Senado, onde Davi Alcolumbre já anunciou que pretende votar tudo neste mesmo ano legislativo. A pressa, curiosamente, nunca aparece para temas como educação básica ou reforma tributária completa, mas sempre dá as caras quando a pauta é afagar ânimos nervosos antes do recesso. Caso o Senado repita a aprovação, a bola vai quicar nos pés de Lula, que poderá sancionar ou vetar.

O Governo, claro, assiste a tudo com o desconforto silencioso de quem tenta equilibrar convicções democráticas e realidades políticas. Afinal, já está escuro o suficiente: ninguém quer acender mais um incêndio.

Mas o ponto crucial é este: a dosimetria aprovada de madrugada não é apenas um cálculo jurídico; é um movimento político carregado de símbolos. Reduzir penas para ataques ao Estado Democrático de Direito pode até ser defensável dentro de certos argumentos formais, mas a mensagem cultural é outra: tenta-se, novamente, reescrever a história recente com uma borracha que apaga mais do que corrige.

A madrugada brasiliense continua sendo o horário nobre de decisões tortas (Foto: Google)
A madrugada brasiliense continua sendo o horário nobre de decisões tortas (Foto: Google)

E assim seguimos, madrugada adentro, entre proxenetas legislativos de causas duvidosas, discursos performáticos e a eterna esbórnia parlamentar que prefere operar quando o país dorme — talvez porque, se víssemos tudo sob luz plena, a vergonha seria demais até para os mais experimentados atores desse drama nacional.


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