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O circo midiático do Caso Eloá

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O documentário Caso Eloá – Refém ao Vivo, recém-chegado à Netflix, reacende uma ferida que o Brasil insiste em mascarar com a pomada rala da amnésia coletiva. Há 17 anos, um sequestro transmitido em cadeia nacional transformou a tragédia em espetáculo — não porque a dramaturgia fosse boa, mas porque a mídia, ávida por audiência, tratou um caso de violência extrema como se fosse a final de um reality show macabro. Revisitar esse episódio é mais do que recontar uma história dolorosa: é confrontar a nossa cumplicidade involuntária, talvez até indecorosa, diante de um palco armado às pressas, com drones improvisados, helicópteros nervosos e repórteres sedentos por exclusividade.

O que o documentário faz, com firmeza e certa elegância trágica, é puxar o fio que muitos preferiram cortar: o papel da imprensa na deterioração de qualquer possibilidade de desfecho seguro. Enquanto negociadores tentavam evitar o colapso emocional de Lindemberg Alves — o sequestrador — boa parte da cobertura jornalística se comportava como se estivesse numa gincana valendo pontos pela frase mais chocante. Microfones apontados para janelas, entrevistas ao vivo com reféns, opiniões relâmpago de especialistas convocados às pressas: uma grande ópera bufa da desresponsabilização profissional, onde cada emissora disputava não a informação, mas o drama bruto.

“O grande mérito do documentário — e aí reside sua força mais amarga — é mostrar que o Brasil adora acreditar que os culpados “são sempre os outros”. A polícia errou, a mídia errou, o sequestrador errou (o maior errado de todos). Mas nós, espectadores, ligados na TV, comentando na mesa do jantar, consumindo cada atualização com a curiosidade apetitosa de quem assiste a um drama que não nos pertence… nós também participamos.”

Não se trata de relativizar a tragédia — longe disso. Eloá Pimentel perdeu a vida num dos episódios mais dolorosos do noticiário brasileiro, e Nayara, sobrevivente, carrega até hoje o peso simbólico de um país que não soube proteger nem as vítimas, nem a verdade. Mas é impossível ignorar que a espetacularização midiática alimentou a instabilidade do sequestrador, inflou a tensão e transformou o apartamento de Santo André num Big Brother sinistro, onde o prêmio final era o sofrimento transmitido em HD. Na época, poucos lembravam que ali havia uma adolescente de 15 anos, não um enredo de novela das oito.

O documentário expõe, com frieza clínica, que o erro não foi apenas a cobertura desmedida — foi a ausência de freios morais. O jornalismo brasileiro, naquele momento, revelou o seu lado mais narcisista: o da notícia que vale mais do que o impacto que provoca; o do repórter que invade perímetros policiais como quem atravessa a faixa de pedestres; o da emissora que sacode o microfone na janela do desespero alheio.

O espetáculo acima da ética

Reassistir ao Caso Eloá pela ótica de 2025 é perceber que pouca coisa mudou, exceto a nitidez das câmeras e a velocidade dos cortes. Hoje, em plena era dos vídeos curtos e da hipercompetição informativa, seria ingênuo imaginar que o mesmo caso não ganharia filtros, hashtags e lives simultâneas nos smartphones de milhões. O que antes dependia de satélites e unidades móveis agora caberia no bolso. Talvez o circo fosse mais ágil, mais interativo, mais global — mas ainda seria circo.

A pergunta incômoda que o documentário levanta é: por que não aprendemos nada? A resposta, talvez, esteja no próprio sistema que financia a informação. Audiência gera receita, e tragédia, no mercado do sensacionalismo, sai barato e rende muito. O Caso Eloá revelou, de forma brutal, que o jornalismo pode se comportar como um vampiro elegante: aproxima-se discretamente, pede uma citação, uma imagem exclusiva, e quando percebemos, já consumiu todo o sangue emocional de uma comunidade. Depois, ainda se retira agradecendo a colaboração.

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É claro que nem toda imprensa entrou nesse delírio performático. Há jornalistas sérios que, à época e hoje, apontaram e apontam as falhas, clamaram por protocolos, defenderam que vidas importam mais do que ibope. Mas foram exceções num cenário dominado por helicópteros sobrevoando telhados como moscas douradas e apresentadores narrando o pânico como se descrevessem a final de um campeonato mundial.

O grande mérito do documentário — e aí reside sua força mais amarga — é mostrar que o Brasil adora acreditar que os culpados “são sempre os outros”. A polícia errou, a mídia errou, o sequestrador errou (o maior errado de todos). Mas nós, espectadores, ligados na TV, comentando na mesa do jantar, consumindo cada atualização com a curiosidade apetitosa de quem assiste a um drama que não nos pertence… nós também participamos. Nosso impulso voyeurista ajudou a consolidar um modelo de cobertura que não hesita antes de atravessar limites éticos.

Eloá Pimentel perdeu a vida num dos episódios mais dolorosos do noticiário (Foto: Wiki)
Eloá Pimentel perdeu a vida num dos episódios mais dolorosos do noticiário (Foto: Wiki)

A pergunta final, a que gruda na garganta, é: se outro “Caso Eloá” acontecesse amanhã, reagiríamos diferente? Ou correríamos novamente para o sofá, como quem paga ingresso para a mesma tragédia reencenada? O documentário não oferece resposta — apenas um espelho. E, convenhamos, pouquíssima gente gosta de olhar no espelho quando a luz é dura demais.


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