A Ilha do Dr. Moreau: estranho, estranho…
A adaptação cinematográfica de A Ilha do Dr. Moreau com Marlon Brando, lançada em 1996, permanece um daqueles filmes que desafiam categorizações simples. Não é exatamente um desastre total, mas também não é uma obra-prima capaz de ser defendida com convicção. Dirigido por John Frankenheimer, o longa se propõe a traduzir para a tela o clássico literário de H.G. Wells, que questiona os limites da ciência, a ética da criação e o monstro que pode surgir quando o homem decide brincar de Deus. No entanto, a execução, recheada de tensões nos bastidores, conflitos entre atores e diretores e uma série de cortes e refilmagens, deixa claro que o resultado acabou tão estranho quanto a premissa da própria história.
O filme tenta mergulhar o espectador em um território ambíguo: nem totalmente horror, nem completamente ficção científica, nem drama psicológico. O enredo acompanha Edward Prendick (interpretado por David Thewlis) enquanto ele naufraga em uma ilha misteriosa, dominada pelo excêntrico Dr. Moreau (Marlon Brando), que realiza experimentos grotescos para criar híbridos humanos-animais. A promessa de horror filosófico e questionamento moral existe, mas é frequentemente diluída por escolhas de roteiro confusas e uma atuação de Brando que oscila entre o intenso e o caricatural. Há momentos em que Brando parece à beira de uma performance shakespeariana; em outros, está tão fora de tom que a presença dele se torna involuntariamente cômica.
“É justamente nessa confusão que mora a singularidade do filme. A Ilha do Dr. Moreau se torna um estudo involuntário sobre o fracasso ambicioso, lembrando que o cinema não é apenas técnica, mas também diplomacia e paciência entre criadores.”
Visualmente, o filme tenta compensar sua narrativa desigual com cenários exuberantes e efeitos práticos que, para os padrões da época, eram bastante impressionantes. A selva da ilha é um personagem por si só, misturando beleza natural e ameaça constante. Os efeitos que transformam animais em híbridos são, em alguns momentos, convincentes; em outros, quase lembram bonecos de parque temático mal-acabados. Esse contraste cria uma sensação de descompasso que pode irritar ou fascinar, dependendo do olhar do espectador. O design de produção, entretanto, merece reconhecimento: o laboratório de Moreau e as instalações da ilha são meticulosamente construídos, evocando uma estranheza quase barroca, como se cada canto escondesse um segredo perturbador.
Apesar dessas tentativas visuais, a obra falha em estabelecer coerência narrativa e tonal. Entre as várias versões do roteiro e as tensões nos bastidores — rumores apontam que Marlon Brando queria improvisar praticamente todas as suas falas —, o filme chega a um ponto em que o espectador não sabe se deve se assustar, refletir ou rir. É uma experiência de leitura do caos, quase no estilo de um ensaio experimental em movimento.
Quando o bizarro se torna arte involuntária
É justamente nessa confusão que mora a singularidade do filme. A Ilha do Dr. Moreau se torna um estudo involuntário sobre o fracasso ambicioso, lembrando que o cinema não é apenas técnica, mas também diplomacia e paciência entre criadores. Ver Brando em seu auge excêntrico, cercado de criaturas estranhas e diálogos truncados, transforma o que poderia ser uma obra esquecível em um objeto de culto irônico. Para quem busca horror clássico ou ficção científica consistente, o resultado pode ser frustrante; para os que apreciam cinema como espetáculo de estranheza e curiosidade, é irresistível.
Além disso, o filme funciona como uma espécie de comentário sobre a própria literatura de H.G. Wells. A história de manipulação genética e ética científica é tão relevante hoje quanto no final do século XIX, mas a maneira como a narrativa cinematográfica se contorce e tropeça diante dessa temática ressalta como é fácil perder a profundidade quando se tenta traduzir ideias complexas para uma linguagem visual simplificada. Curiosamente, os erros e exageros de Brando e da produção acabam reforçando a inquietação moral do romance: ciência sem controle, caos inesperado, a humanidade confrontada com sua própria monstruosidade.
A Ilha do Dr. Moreau de 1996 é um filme que desafia a categorização fácil. É desconcertante, irritante, irônico e, de certo modo, fascinante. Não é um clássico do cinema, mas também não é totalmente descartável: é um documento de ambição, desordem e audácia artística, com Marlon Brando no centro de um furacão de tentativas, erros e momentos de estranho brilho. Para os cinéfilos, vale mais como experiência e discussão do que como entretenimento convencional — e talvez seja exatamente essa estranheza que faz a obra sobreviver no imaginário popular.

Se o objetivo era criar horror ou reflexão, o filme falha em estabilidade; se o objetivo era provocar curiosidade e risadas nervosas, ele acerta em cheio. Estranho, estranho, sim — mas impossível de ignorar.
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