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As indagações de O Cheiro do Ralo

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Há filmes que se impõem não pelo espetáculo, mas pela ferrugem. O Cheiro do Ralo (2007), dirigido por Heitor Dhalia a partir do romance corrosivo de Lourenço Mutarelli, é justamente isso: uma obra que enverga, entorta e range. Não é confortável. Não é linearmente agradável. E certamente não é edificante. Mas é, com teimosia, uma das mais instigantes provocações do cinema brasileiro recente. Um estudo moral às avessas, disposto a arrancar a vernizagem das relações humanas com a mesma displicência com que seu protagonista coleciona objetos de vidas arruinadas.

O filme acompanha Lourenço — interpretado por um Selton Mello numa das performances mais ousadas de sua carreira — um comprador de penhores e miudezas emocionais alheias. É um homem cuja humanidade foi reduzida ao valor de troca: sente apenas o que tem preço. O ralo fétido de seu banheiro, presente constante, metáfora óbvia, mas eficaz, funciona como um lembrete sensorial de que algo apodrece não só no encanamento, mas também no espírito do sujeito. É uma podridão que chama, que respira, que insiste. E, de um jeito torto, dialoga com ele mais do que qualquer pessoa ao redor.

“A podridão do ralo não tem origem precisa; o comportamento de Lourenço tampouco encontra desculpas psicológicas elaboradas. Esse silêncio interpretativo faz da obra um convite ao desconforto intelectual, uma raridade num cinema que frequentemente sublinha a moral para evitar equívocos. O Cheiro do Ralo quer justamente o contrário: que o equívoco permaneça.”

Dhalia filma tudo de perto, num naturalismo seco que lembra um aperto no pescoço. A mise-en-scène é de uma simplicidade agressiva: cenários claustrofóbicos, iluminação que parece fluorescente demais, diálogos curtos como tapas. Nada ali é pensado para suavizar. O filme confia na crueldade afiada do texto de Mutarelli, que boia na tela como óleo velho — viscoso, irônico, ácido. Essa insistência no desconforto faz O Cheiro do Ralo parecer uma experiência quase táctil; dá vontade de estender a mão para checar se aquilo tudo realmente fede.

O que mais chama atenção, porém, é como o filme transforma insignificâncias em símbolos — a bunda da garçonete, a bola de boliche, a caneta do cliente derrotado, a perna mecânica perdida. Cada objeto funciona como espelho rachado da moralidade do protagonista, sempre fragmentada, sempre torta.

Em vez de construir sua identidade, Lourenço a acumula. A alma como depósito de penhores: nada vale muito, mas tudo ocupa espaço.

O homem que compra destinos

O poder de O Cheiro do Ralo está em sugerir — com a sutileza de um soco — que o protagonista não compra apenas objetos, mas destinos. Cada troféu que entra em sua loja é parte de uma vida que perdeu o prumo, e ele, com seu jeito burocrático de verdugo, lucra com isso. Selton Mello interpreta esse vampirismo cotidiano com uma economia de gestos que impressiona. Seu Lourenço não é um vilão clássico, nem um anti-herói romântico: é um sujeito comum que, enquadrado de perto demais, revela o que todos preferimos deixar fora do foco.

Essa construção ecoa uma crítica social que permanece pertinente até hoje. Mutarelli parece perguntar — e Dhalia repete a pergunta, só que mais alta: quanto de nós mesmos está à venda? O capitalismo afetivo, tão discutido nas redes, surge no filme numa versão analógica, pré-smartphone, mas igualmente brutal. As pessoas, ali, já negociavam seus fracassos e seus pudores, às vezes em troca de quase nada. O Brasil de 2007 não era tão diferente do Brasil de agora: ainda tratamos dignidade como um luxo sujeito a desvalorização cambial.

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Além disso, o filme se destaca por evitar explicações fáceis. A podridão do ralo não tem origem precisa; o comportamento de Lourenço tampouco encontra desculpas psicológicas elaboradas. Esse silêncio interpretativo faz da obra um convite ao desconforto intelectual, uma raridade num cinema que frequentemente sublinha a moral para evitar equívocos. O Cheiro do Ralo quer justamente o contrário: que o equívoco permaneça.

Outro elemento saboroso — ainda que azedo — é a relação do protagonista com a garçonete, interpretada por Paula Braun. A obsessão dele por sua bunda, mais do que um desejo banal, é a prova de que seu olhar foi reduzido ao fragmento, à metonímia grosseira. Ele não enxerga pessoas, mas partes. Não percebe histórias, apenas superfícies. Dhalia filma essa fixação com ironia precisa, expondo o ridículo sem cair no moralismo.

No fim, O Cheiro do Ralo é um filme que insiste em nos colocar diante do que evitamos. Fala sobre feiura, miséria emocional, poder barato, covardia cotidiana. É desagradável, mas também lúcido. Tem a coragem de apontar o dedo para um tipo de mediocridade que raramente aceitamos admitir — a nossa.

O poder de O Cheiro do Ralo está em sugerir — com a sutileza de um soco (Foto: Google)
O poder de O Cheiro do Ralo está em sugerir — com a sutileza de um soco (Foto: Google)

E talvez por isso permaneça tão atual. Porque o ralo continua ali, murmurando. Porque a podridão não some apenas porque fingimos não ouvi-la. Porque há sempre alguém disposto a transformar a miséria alheia em oportunidade. E porque, no fundo, ainda não decidimos se somos espectadores horrorizados… ou clientes na fila.


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