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Clara Nunes: dom e morte por anafilaxia

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Clara Nunes não era só uma voz. Era uma entidade. Um desses casos raros de artista que parecia ter um pacto secreto com o Brasil profundo — aquele Brasil sincrético, ritualístico, feito de tambor, transe e suor. Mais de quarenta anos após sua morte, ainda há um vácuo no cenário musical que ninguém conseguiu preencher com a mesma firmeza poética e espiritual. A intérprete mineira, filha da umbanda e das ladeiras de Caetanópolis, foi uma das primeiras mulheres a fincar o pé no samba com força autoral e presença divina. Não se tratava apenas de cantar — Clara incorporava.

Com um domínio vocal elogiado por nomes como Vinicius de Moraes e João Nogueira, Clara conseguia elevar o samba a um patamar quase litúrgico. Seus discos dos anos 1970, especialmente Claridade (1975), Canto das Três Raças (1976) e Guerreira (1978), continuam como colunas de sustentação da música popular brasileira. Ela foi uma espécie de sacerdotisa pop da ancestralidade afro-brasileira, jogando luz sobre os orixás, as rezas e os batuques que o Brasil branco da Zona Sul fingia não ouvir.

“Mas o Brasil prefere seus mitos sem feridas. De Clara, exalta-se o canto e a beleza, ignora-se o laudo. Seus discos continuam sendo lançados em versões remasterizadas, e sua imagem virou ícone de camisetas e totens culturais.”

E ainda que muitos hoje a reverenciem com ar de santa popular — há quem acenda velas para ela, literalmente — sua morte trágica é quase sempre tratada com véus e silêncio. Mas Clara não morreu em um ritual ou num transe místico, como poderiam supor os mais supersticiosos. Morreu por um choque anafilático, resultado de uma reação a anestesia, durante uma cirurgia de varizes, em 1983. Aos 40 anos, plena, no auge.

Não era para ela ter morrido. E talvez esse seja o lamento mais incômodo. Não foi o destino, foi o sistema. Sua morte expôs uma negligência hospitalar que o Brasil, com sua tradicional habilidade de enterrar escândalos entre um jogo da Seleção e uma missa campal, preferiu esquecer. A Clínica São Vicente, no Rio de Janeiro, onde o episódio se deu, jamais foi responsabilizada formalmente por nada. O prontuário virou mito, e a verdade virou lenda.

O silêncio que mata mais que a alergia

Na época, houve cochichos, revolta abafada, colunistas indignados. Mas tudo passou. Ninguém foi a julgamento. A suspeita de erro médico — Clara teria informado ser alérgica à anestesia — ficou no ar como uma assombração não exorcizada. A medicina brasileira dos anos 1980, arrogante e pouco afeita à responsabilização, simplesmente seguiu seu curso. Hoje, em plena era da judicialização da saúde e da vigilância biomédica, seu caso ecoa como um grito parado no tempo.

Clara foi vítima de algo que ainda é uma chaga brasileira: a indiferença institucional. É possível morrer de samba, de amor, de tristeza. Mas morrer de anafilaxia em cirurgia eletiva é um retrato cruel da precariedade médica nacional. Pior: a negligência veio justamente contra uma mulher que trazia no corpo e na voz a síntese das exclusões brasileiras — mulher, branca de orixá, interiorana, sambista e popular. A morte dela não foi apenas triste. Foi simbólica.

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Mas o Brasil prefere seus mitos sem feridas. De Clara, exalta-se o canto e a beleza, ignora-se o laudo. Seus discos continuam sendo lançados em versões remasterizadas, e sua imagem virou ícone de camisetas e totens culturais. Mas o debate sobre responsabilidade médica no Brasil mal passou pelo seu caixão. Ninguém quer lembrar que a “guerreira” tombou por causa de uma simples agulha mal aplicada.

O culto à Clara esconde o descaso com Clara. Ela virou lenda, mas o sistema que a matou continua vivo, vendendo planos de saúde e internando pacientes como quem carimba envelopes. Isso, sim, é misticismo nacional: transformar tragédia em nostalgia.

Claro que a música venceu. Clara venceu. Mas venceu com a ferida aberta, com a pergunta nunca respondida. Quantas Claras mais morreram assim? Quantas ainda morrerão?

A lembrança que precisamos manter não é só da artista que subia ao palco vestida de Oxum, girando em vestidos longos como se o chão fosse feito de mar. Mas também da mulher que confiou em um bisturi e morreu por conta de um erro que o Brasil insiste em classificar como “fatalidade”.

Clara Nunes não era só uma voz. Era uma entidade mística e cultural (Foto: Portela)
Clara Nunes não era só uma voz. Era uma entidade mística e cultural (Foto: Portela)

Clara foi exceção no talento, mas regra na morte: uma vítima da estrutura que prefere morrer a pedir desculpas. Ainda que se cantem louvores a ela nas rodas de samba, falta cantar verdades nos corredores dos hospitais. E que se faça justiça, nem que seja tardiamente, à mulher que nunca foi apenas voz: foi verbo. Clara vive — e cobra.


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