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Da Lama ao Caos: um assombro sonoro

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A música brasileira sempre teve seus momentos de reinvenção, mas poucos discos conseguiram romper o cânone com a força de Da Lama ao Caos, o debute da banda Chico Science & Nação Zumbi, lançado em 1994. Passadas mais de três décadas desde a sua estreia, o álbum continua reverberando como uma declaração estética, política e sonora sem paralelos. Em tempos de algoritmos e produções plastificadas, Da Lama ao Caos mantém a relevância justamente por ser o oposto disso: orgânico, impuro, rebelde — um manifesto que ainda hoje assombra e encanta quem o ouve.

O disco é considerado o marco fundador do movimento Manguebeat, um híbrido entre o regional e o global, entre o maracatu e o rock, entre a lama e o caos urbano do Recife. Essa fusão não era mero artifício estético: era uma denúncia em ritmo e poesia do abandono social, cultural e econômico da capital pernambucana nos anos 1990. Enquanto o Brasil dançava ao som do axé da Bahia ou do pagode do Rio, Da Lama ao Caos chegou como um soco na boca do estômago da cena musical.

“Da Lama ao Caos continua sendo revisitado por novas gerações. Artistas contemporâneos do rap, do eletrônico e até do pop mainstream citam Chico Science e o Manguebeat como influências.”

As faixas são curtas e diretas, cheias de colagens, distorções e batidas gordurosas de alfaia e caixa. Guitarras suingadas, efeitos eletrônicos rudimentares e as letras de Chico Science formam um caldeirão onde o Recife do mangue se mistura ao Nova York do hip hop e ao Londres do punk. “A Cidade”, faixa de abertura, é um hino modernista sobre desigualdade e resistência. “Rios, Pontes & Overdrives” amplia a visão para a conexão entre local e global. Já “Maracatu Atômico” — uma reinterpretação de Jorge Mautner — transforma a canção original em um artefato futurista de percussão e distorção.

Não por acaso, Da Lama ao Caos foi abraçado pela crítica desde o lançamento. O jornal Folha de S.Paulo na época classificou o disco como uma “salvação criativa” para uma cena brasileira então morna e previsível. Chico Science rapidamente se tornou símbolo de uma juventude que queria um Brasil mais cosmopolita sem abrir mão de suas raízes. A capa do disco, com Chico emergindo de um mangue, tornou-se imagem emblemática da cultura pop nacional.

O nascimento do Manguebeat

Para entender Da Lama ao Caos, é preciso situá-lo no contexto do Manguebeat, o movimento cultural surgido no Recife no início dos anos 1990. Não foi só um movimento musical, mas uma proposta ampla de ocupação artística da cidade, incluindo literatura, artes plásticas e audiovisual. O manifesto “Caranguejos com Cérebro”, escrito por Fred 04 (Mundo Livre S/A) e pelo próprio Chico Science, estabelecia o princípio de “ligar um cano do mangue à antena parabólica”. Traduzindo: ser local sem ser provinciano.

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Essa proposta se encarnou plenamente no disco. E mais: Da Lama ao Caos abriu caminho para que outras bandas da cena pernambucana ganhassem projeção nacional, como Mundo Livre S/A e Mestre Ambrósio. A partir dali, o Brasil deixou de olhar apenas para o eixo Rio-São Paulo como centro produtor de música relevante. Recife virou polo, referência, matriz.

O trágico acidente que tirou a vida de Chico Science em 1997, apenas três anos após o lançamento do álbum, impediu que o movimento tivesse ainda mais impacto sob sua liderança. Mesmo assim, Nação Zumbi seguiu na estrada, lançando bons discos, mas sempre sob a sombra de Da Lama ao Caos e de seu sucessor, Afrociberdelia (1996). A morte precoce de Chico cristalizou sua figura como um mito da música brasileira, e esse primeiro disco ganhou contornos de documento histórico.

A força do celebrado álbum Da Lama ao Caos ainda resiste ao tempo (Foto: Arquivo)
A força do celebrado álbum Da Lama ao Caos ainda resiste ao tempo (Foto: Arquivo)

Da Lama ao Caos continua sendo revisitado por novas gerações. Artistas contemporâneos do rap, do eletrônico e até do pop mainstream citam Chico Science e o Manguebeat como influências. Em uma época marcada por retrocessos culturais e crises ambientais, a imagem do mangue como berço de vida e resistência urbana volta a fazer sentido. Não é nostalgia: é necessidade.

Da Lama ao Caos não é apenas um disco. É um grito fossilizado na lama, ainda ecoando no caos.


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