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Domingo Legal: dos Mamonas ao PCC

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O “Domingo Legal” foi, durante mais de uma década, o altar mais escancarado da cultura popular brasileira televisionada. Sob a batuta carismática — e muitas vezes controversa — de Gugu Liberato, o programa estreou em janeiro de 1993 com a missão de animar as tardes de domingo no SBT, mas acabou se tornando uma espécie de zoológico audiovisual: um espaço em que emoção, escândalo, erotismo e até mesmo o paranormal conviviam harmonicamente entre um quadro de mágica e uma reportagem sobre enchentes. A expressão “vale tudo” nunca encontrou abrigo mais confortável.

Nos seus primeiros anos, o “Domingo Legal” ainda ensaiava um equilíbrio entre o popular e o palatável, mas foi com a adoção do formato ao vivo, a partir de agosto de 1994, que o programa encontrou sua verdadeira identidade: o improviso exagerado, a emoção descabida, a busca incessante pelo furo televisivo e, claro, a luta encarniçada contra o então imbatível “Domingão do Faustão”. O horário das 15h às 20h, a partir de 1997, colocou as duas atrações frente a frente numa guerra de audiência dominical que deixou sequelas e algumas pérolas inesquecíveis na história da TV.

“Talvez o que o “Domingo Legal” nos ensine, ao fim de tudo, é que a TV aberta brasileira já foi mais ousada, mais suja, mais descontrolada — e, por que não, mais autêntica. Com todos os seus erros, excessos e escorregões éticos, o programa de Gugu representava uma era em que a televisão ainda era o grande espelho distorcido da sociedade.”

Durante seu auge, entre o final dos anos 1990 e o início dos 2000, o programa era praticamente onipresente na vida do brasileiro médio. Era difícil encontrar um lar em que a televisão não estivesse sintonizada no SBT quando Gugu surgia sorridente, segurando o microfone prateado. Mas o que o “Domingo Legal” oferecia não era apenas entretenimento — era uma espécie de experiência sensorial total, que misturava emoção barata com tragédia nacional, escândalo com riso fácil, jornalismo com espetáculo.

Em 2 de março de 1996, por exemplo, com a cobertura intensa e dramática do acidente aéreo horroroso que matou todos os integrantes da banda Mamonas Assassinas, o programa conquistou 37 pontos de audiência e picos de 47 — um número assombroso para os padrões da televisão aberta. Era o Brasil de luto, chorando em tempo real diante de um programa que transformava comoção coletiva em capital midiático. Gugu narrava o lamento nacional como um maestro da dor em tempo real. E o público respondia com fidelidade cega.

O PCC, o sensacionalismo e a moral da banheira

O problema é que, como toda obra movida a excessos, o “Domingo Legal” estava destinado a ultrapassar algum limite ético. O estopim veio em 2003, com a famigerada “entrevista” com supostos integrantes do Primeiro Comando da Capital (PCC). A matéria, que se vendia como jornalismo investigativo de alto risco, revelou-se uma fraude montada com figurantes contratados. Foi um escândalo digno de seu próprio quadro no programa. A credibilidade do “Domingo Legal” foi dilacerada, e a audiência despencou. A televisão, antes cúmplice silenciosa, reagiu em uníssono: era demais até para os padrões da época.

Mas os sinais já estavam dados muito antes disso. Basta lembrar da famosa “Banheira do Gugu”, talvez o quadro mais icônico — e problemático — da atração. Nele, homens e mulheres seminuas se digladiavam dentro de uma banheira inflável, tentando capturar sabonetes com um grau de fricção física que beirava o softcore. Tudo isso às três da tarde, em rede nacional, com crianças no sofá e pais fingindo que aquilo era “só uma brincadeira”. Em 2000, o Ministério da Justiça interveio, obrigando o SBT a mover o quadro para depois das 20h. Gugu se revoltou. Ratinho, sempre pronto para o circo, exibiu sua própria versão da banheira no dia seguinte. A audiência explodiu. O escândalo também.

O “Domingo Legal” sempre caminhou nesse fio tênue entre a inovação e o escárnio. Foi o primeiro programa de auditório a integrar a internet como forma de interação com os telespectadores, muito antes das redes sociais. Utilizava mensagens enviadas pela página do programa ou pelo portal OFuxico, o que para os padrões da época parecia coisa de ficção científica. Também foi pioneiro em coberturas jornalísticas de impacto — noticiando em primeira mão a morte de PC Farias, o acidente de Herbert Vianna, o sequestro de Wellington Camargo e até rebeliões em presídios.

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Mas o jornalismo, no “Domingo Legal”, era um gênero híbrido. Tratava tragédias com o mesmo tom de um quadro de mágica. Quando a médium Socorro Leite “entrou em contato” com presidiários mortos no extinto Carandiru, o país ficou dividido entre o espanto, a gargalhada e o engajamento emocional. O programa registrou picos de 39 pontos, derrotando o Fantástico com o pé nas costas.

A briga por audiência também levou a episódios bizarros como a frustrada tentativa de Sonia Abrão entrevistar Denise Tacto, esposa do ator Gerson Brenner, em 1998, ao vivo, no mesmo horário em que a Globo tentava segurar o monopólio da cobertura. Foi uma batalha jurídica e moral transmitida em tempo real. Sonia acusou a Globo de censura, e Gugu aplaudiu. Era o entretenimento transformado em guerrilha.

O Domingo Legal foi a feição do seu maestro, o saudoso Gugu Liberato (Foto: Wiki)
O Domingo Legal foi a feição do seu maestro, o saudoso Gugu Liberato (Foto: Wiki)

Após a saída de Gugu para a Record em 2009, Celso Portiolli assumiu o posto com a missão de reinventar um programa que já não tinha fôlego. De colosso da audiência, o “Domingo Legal” virou um espaço morno de games e vídeos de TikTok reciclados. Perdeu o poder de fogo, como um velho gladiador aposentado, que ainda veste a armadura, mas já não enfrenta os leões. O SBT, por sua vez, transformou o programa em uma espécie de parque de diversões digital — inofensivo, previsível, domesticado.

Há quem veja nisso um ganho civilizatório. Afinal, um programa que colocou crianças para cantar músicas com duplo sentido e ofereceu o microfone a uma médium que conversava com presidiários mortos talvez devesse mesmo se aposentar. Mas também há os nostálgicos — os que lembram com um sorriso torto da bizarrice coletiva que era o “Domingo Legal” em seus dias de glória. Para estes, restam os vídeos no YouTube, com resolução duvidosa e a trilha sonora do Vangelis (Nucleogenesis – Part 1) que arrepiava todos os pelos do corpo.

Talvez o que o “Domingo Legal” nos ensine, ao fim de tudo, é que a TV aberta brasileira já foi mais ousada, mais suja, mais descontrolada — e, por que não, mais autêntica. Com todos os seus erros, excessos e escorregões éticos, o programa de Gugu representava uma era em que a televisão ainda era o grande espelho distorcido da sociedade. Não um espelho plano, limpo e previsível como as vitrines dos streamings, mas uma daquelas superfícies côncavas de parque de diversões: torta, esquisita, e profundamente humana.

O “Domingo Legal” foi isso. Uma bagunça. Um laboratório. Um delírio coletivo. Dos Mamonas ao PCC, da Banheira à médium, de Gretchen deixando Van Damme “animado” ao Chupacabra, da glória ao desgaste. Hoje, é só mais um domingo na TV. E talvez, só talvez, o Brasil também tenha ficado um pouco mais sem graça.


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