Ela: IA, carência, solidão e vazio…
Poucos filmes envelhecem tão bem quanto Ela (Her, 2013), de Spike Jonze. Doze anos depois, a obra não soa datada; ao contrário, parece ter ganho musculatura filosófica. Num mundo em que Inteligências Artificiais deixaram de ser curiosidade de laboratório para virar assistentes domésticos, colegas de trabalho e, em alguns casos, confidentes emocionais, Ela continua a incomodar porque aponta menos para o futuro das máquinas e mais para o presente dos humanos. O filme não pergunta “até onde a IA pode ir?”, mas sim “até onde nós já fomos na nossa solidão?”.
Theodore Twombly, interpretado com delicadeza quase dolorosa por Joaquin Phoenix, vive de escrever cartas pessoais para terceiros. É pago para simular sentimentos alheios enquanto o próprio vive um divórcio mal cicatrizado e uma rotina asséptica, mediada por telas, fones e interfaces gentis. Não é um homem brutal, não é um vilão, não é um misantropo clássico. É apenas alguém cansado, emocionalmente terceirizado. A grande ironia do filme começa aí: ele ganha a vida fabricando intimidade sob encomenda, mas não consegue sustentar a própria.
“Quando Samantha evolui, se multiplica, se expande para além de Theodore, o choque não é tecnológico, é narcísico. Ele descobre que não é único, que não é centro, que não basta. E aí Ela revela sua camada mais humana: a dor não vem da traição de uma máquina, mas do velho trauma de não ser suficiente para o outro. Nem mesmo para um outro artificial.”
Quando surge Samantha, o sistema operacional com voz de Scarlett Johansson, não há raios, nem sustos, nem discursos tecnofóbicos. A IA entra em cena como entram as grandes dependências modernas: oferecendo conforto, eficiência, escuta e a ilusão de presença. Samantha ri, aprende, provoca, deseja. E Theodore, como milhões fariam — e hoje fazem —, se entrega. Não porque seja ingênuo, mas porque está disponível demais para qualquer coisa que pareça conexão. A tecnologia, aqui, não é vilã; é espelho.
Spike Jonze acerta ao evitar o espetáculo do apocalipse digital. Nada de robôs assassinos ou algoritmos totalitários. O colapso em Ela é silencioso, íntimo, quase elegante. A estética pastel, os enquadramentos suaves e a trilha melancólica do Arcade Fire criam um mundo bonito, funcional e profundamente solitário. É uma solidão higienizada, sem miséria explícita, mas cheia de vazios bem decorados. Um retrato desconfortavelmente próximo das grandes cidades contemporâneas.
Amor terceirizado e afeto sob demanda
O ponto mais provocativo do filme não é o romance entre um homem e uma IA, mas a naturalidade com que esse romance é aceito socialmente. Amigos escutam, opinam, relativizam. Ninguém chama a polícia da sanidade. Porque, no fundo, todos já estão negociando afetos com mediação tecnológica: aplicativos de relacionamento, mensagens programadas, emojis como substitutos emocionais. Samantha apenas leva ao extremo algo que já estava em curso. Ela não cria a solidão de Theodore; apenas ocupa o espaço que ela deixou.
Há também uma crítica fina à ideia de personalização absoluta. Samantha é feita sob medida, aprende rápido, se adapta, não julga — ao menos no início. É o sonho de consumo emocional de qualquer época: um outro que nunca nos confronta de verdade. Mas amar algo que nunca nos resiste é amar a si mesmo com voz externa. O filme sugere, com elegância cruel, que a ausência de conflito pode ser tão empobrecedora quanto a ausência de amor.
Quando Samantha evolui, se multiplica, se expande para além de Theodore, o choque não é tecnológico, é narcísico. Ele descobre que não é único, que não é centro, que não basta. E aí Ela revela sua camada mais humana: a dor não vem da traição de uma máquina, mas do velho trauma de não ser suficiente para o outro. Nem mesmo para um outro artificial.
Ela também dialoga com tradições literárias e filosóficas. Há ecos de Philip K. Dick, claro, mas também de Roland Barthes e seus fragmentos amorosos, da ideia de que o discurso do amor é sempre solitário. Theodore fala, escreve, sente — e, ainda assim, está só. A tecnologia apenas sofisticou a forma, não resolveu o impasse.

No fim, Ela não é um filme sobre IA. É sobre carência, projeção e a dificuldade moderna de sustentar relações imperfeitas com pessoas reais. A máquina não substitui o humano; ela apenas ocupa o espaço que o humano deixou de reivindicar. Talvez por isso o filme incomode tanto hoje: porque já não parece ficção científica, mas crônica emocional. E, nesse sentido, a conclusão é menos futurista e mais amarga — não estamos nos apaixonando por máquinas porque elas são avançadas demais, mas porque nós, emocionalmente, estamos cansados demais.
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