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O assassinato que descorou os Rodrigues

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Em 1929, o Brasil ainda tateava o século XX, e o Rio de Janeiro, então capital da República, era uma cidade tomada por contradições. De um lado, o glamour da Belle Époque carioca; de outro, uma imprensa feroz, ácida e sensacionalista. Foi nesse cenário que a tragédia envolvendo Roberto Rodrigues escancarou o preço da fama e da imprensa escandalosa — um episódio que, até hoje, reverbera como exemplo dos limites tênues entre jornalismo, espetáculo e tragédia pessoal.

Roberto Rodrigues não era um jornalista qualquer. Filho de Mário Rodrigues, um dos fundadores dos jornais A Manhã e Crítica, cresceu em meio às letras, mas se destacou nos traços. Desenhista refinado, de talento reconhecido até por nomes como Cândido Portinari, dividiu ateliê com o pintor e ajudou a consolidar, pelo traço, o estilo déco no Brasil. Sua formação na Escola Nacional de Belas Artes trouxe prêmios e respeito, mas também postura crítica, em especial contra o academicismo que vigorava na arte brasileira da época.

“O episódio também revelou o quanto a exposição pública pode desestabilizar vidas por completo. Sylvia não era apenas uma mulher infiel aos olhos da sociedade, mas uma mãe e escritora que, pressionada pelo escândalo, viu-se encurralada até perder o controle.”

Era uma família destinada ao protagonismo. Além de Roberto, estavam ali seu irmão Mário Filho — futuro patrono do jornalismo esportivo brasileiro e que daria nome ao estádio do Maracanã — e Nelson Rodrigues, ainda um rapaz de 17 anos, que um dia se tornaria o maior dramaturgo do país. Mas, antes de tudo isso, veio o escândalo.

O estopim foi uma reportagem publicada no jornal Crítica, ilustrada por Roberto, que expunha detalhes íntimos da separação de Sylvia Serafim Thibau, escritora e figura conhecida nos círculos cariocas. O conteúdo insinuava adultério, algo que, em uma sociedade conservadora e machista, expunha não só a reputação da mulher como o destino de sua própria vida social. No fim da década de 1920, manchetes escandalosas eram práticas comuns, mas a ousadia daquela matéria ultrapassou o que o público estava acostumado a ver.

Quando o jornalismo ultrapassa a dignidade

No início da tarde de 26 de dezembro de 1929, Sylvia decidiu agir. Armada, foi até a redação do Crítica à procura dos responsáveis pela publicação. Não encontrando Mário Rodrigues nem seu filho mais velho, Mário Filho, Sylvia pediu para falar em reservado com Roberto, que acompanhara a reportagem com seus desenhos. Minutos depois, um disparo ecoou pela redação. O jovem desenhista tombava baleado, diante da perplexidade de seu irmão Nelson, que descia as escadas naquele instante. Três dias depois, Roberto morria, aos 23 anos, deixando uma viúva e três filhos — um deles ainda por nascer.

A tragédia não terminou ali. Mário Rodrigues, patriarca da família e dono da redação que se transformara em cenário de crime, morreria poucos meses depois, vítima de trombose cerebral. Embora não se possa afirmar relação direta entre os eventos, o encadeamento é brutal. Em seguida, a absolvição de Sylvia — um desfecho jurídico que chocou a opinião pública — e, anos depois, seu próprio suicídio, encerraram de maneira trágica um ciclo de destruição iniciado por um jornalismo sensacionalista, que havia escolhido transformar a dor privada em espetáculo.

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O caso expôs, de forma precoce, os riscos do jornalismo que cruza a linha do interesse público para adentrar o terreno da exposição pessoal gratuita. Não à toa, Nelson Rodrigues, já adulto, revisitaria o episódio diversas vezes em suas crônicas e peças, transformando a experiência familiar em matéria-prima para a compreensão do trágico brasileiro. Para ele, a dor tinha cor, endereço e nome.

O estopim foi uma matéria publicada no Crítica, ilustrada por Roberto (Foto: Arquivo)
O estopim foi uma matéria publicada no Crítica, ilustrada por Roberto (Foto: Arquivo)

O episódio também revelou o quanto a exposição pública pode desestabilizar vidas por completo. Sylvia não era apenas uma mulher infiel aos olhos da sociedade, mas uma mãe e escritora que, pressionada pelo escândalo, viu-se encurralada até perder o controle. A crítica à imprensa, no entanto, não apaga sua responsabilidade pelo assassinato, mas reforça a reflexão sobre o quanto o jornalismo pode ser motor de tragédias quando deixa de servir à sociedade para servir ao circo.

Hoje, a obra de Roberto Rodrigues sobrevive quase como um esboço póstumo do talento interrompido. Suas exposições esporádicas, como a de 1993 ou a mais recente na Galeria Hermitage, oferecem vislumbres do artista que poderia ter sido. Mas o assassinato que “descorou” os Rodrigues foi mais do que o fim de uma promessa artística: foi um alerta antecipado sobre o jornalismo irresponsável e a linha fina que separa notícia e desgraça. Uma linha que, quase um século depois, ainda é cruzada com frequência assustadora.


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