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O Caso Amarildo é a síntese nacional

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Quem se lembra de Amarildo de Souza, pedreiro, morador da Rocinha, desaparecido em 2013 após ser detido por policiais da UPP? Quase todo mundo já ouviu o nome, poucos sabem a história completa, e menos ainda se importam com o fato de que nunca encontraram o corpo. No Brasil, corpos somem, narrativas evaporam e responsabilidade é artigo de luxo. O desaparecimento de Amarildo virou símbolo, trending topic, bandeira de manifestação, e, depois, como tudo no país, virou estudo de caso acadêmico e material para podcasts true crime. Tornou-se também uma síntese cruel do que chamamos de Estado democrático, uma espécie de democracia com rodapé, onde a promessa é grande e a entrega é um bilhete amassado.

A UPP, vale lembrar, era o coração do projeto de “pacificação”: levar Estado onde antes só havia polícia e bandido (como se fossem categorias distintas). Era o governo dizendo: “vamos civilizar a barbárie”. Na prática, criou-se um zoológico social em que o morador de favela era o animal exótico e o policial, o tratador com luvas de choque. A sociedade aplaudiu porque adora acreditar em soluções rápidas, estéticas, televisivas. A Globo filmava, a Ana Maria comentava, e o Rio exportava para o mundo um modelo de segurança pintado com spray metálico: brilhante na distância, tóxico no contato.

“O Caso Amarildo sintetiza algo mais profundo: nossa incapacidade de lidar com aquilo que nos envergonha. Não se trata só da violência, mas da culpa. O Brasil não consegue pedir perdão porque não reconhece o próprio erro. Preferimos slogans — “UPP salvou”, “pacificação falhou”, “polícia é vítima” — a diagnósticos honestos.”

A morte de Amarildo, contudo, foi uma falha de roteiro. Ele não deveria ter morrido — e, pior, não deveria ter sumido. A história era simples demais para ser negada: homem some após entrar na UPP, policiais dão versões contraditórias, perícias indicam tortura, e, mesmo assim, a corporação ensaia o velho samba-enredo: “foi mal-entendido, ele saiu por outra porta”. Só faltou dizer que pegou uma carona com um OVNI. A verdade é que o caso rompeu a fantasia higienizada da pacificação. De repente, percebemos que o “Estado civilizatório” era uma ficção colonial: à favela, controle e punição; ao asfalto, discurso e publicidade.

Quase todos os policiais envolvidos foram condenados, e isso foi celebrado como vitória. Mas é aí que começa a ironia nacional: quando a exceção vira propaganda de mérito. O Brasil coleciona fracassos, mas exibe processos penais raros como se fossem medalhas olímpicas. Condenar policiais assassinando pobres é como achar petróleo no quintal — acontece, mas não vira regra. A impunidade é o sistema operacional, não o vírus.

Herói sem corpo, país sem memória

A pergunta que ecoa desde então — “Cadê o Amarildo?” — deveria ser incômoda, mas virou uma espécie de slogan da nossa incapacidade. Não só porque o corpo nunca foi encontrado, mas porque a pergunta não gera respostas políticas. O Brasil é um país que convive bem com desaparecidos: da ditadura à milícia, do Araguaia à Baixada. Não encontrar o corpo de Amarildo é quase parte da liturgia nacional: sem cadáver, sem prova; sem prova, sem culpa; sem culpa, vida que segue. Amarildo foi engolido por uma tradição mais antiga que qualquer UPP.

E, claro, não dá para fingir que a comoção social durou mais que o trending topic. A esquerda adotou o caso como símbolo, a direita disse que era “politização da tragédia”, e o centro fingiu que não tinha nada a ver. No fim, todo mundo saiu satisfeito com o discurso que escolheu, sem precisar enfrentar o ponto central: a violência policial não é erro, é política pública. Não nasce do acaso; nasce de decisão. E, como toda política, tem destinatário claro: os indesejáveis.

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Passados anos, o Rio desmontou as UPPs, o país esqueceu do projeto, e o Brasil continuou administrando favelas como territórios estrangeiros, ocupados militarmente. A diferença é que, agora, nem a maquiagem existe mais. Se antes fingíamos civilidade, hoje abraçamos cinismo. “É guerra”, dizem alguns. “É mercado”, dizem outros. “É inevitável”, dizem os pragmáticos. Mas todos concordam numa coisa: não se mexe na estrutura. E quem ousa perguntar vira idealista, comunista, hippie, ou qualquer outro termo folclórico que sirva para deslegitimar quem insiste em humanidade.

O Caso Amarildo sintetiza algo mais profundo: nossa incapacidade de lidar com aquilo que nos envergonha. Não se trata só da violência, mas da culpa. O Brasil não consegue pedir perdão porque não reconhece o próprio erro. Preferimos slogans — “UPP salvou”, “pacificação falhou”, “polícia é vítima” — a diagnósticos honestos. Somos um país onde o Estado mata, nega, esconde o corpo e, depois, diz que está aprendendo. Um Brasil em curso de pós-graduação eterna, mas sem TCC.

A síntese nacional é essa: o desaparecimento de Amarildo é o desaparecimento daquilo que não queremos ver — racismo, pobreza, militarização, necropolítica, indiferença. Não é só uma tragédia, é uma metáfora. Não desapareceu um homem; desapareceu o que poderia nos constranger.

E talvez por isso o caso ainda provoca eco: porque revela quem somos quando ninguém está filmando. Porque mostra que o Brasil é capaz de clamar por justiça, mas igualmente capaz de voltar à novela. Porque lembra que, aqui, o esquecimento é política pública, e a memória, resistência artesanal. E porque, no fundo, a pergunta “Cadê o Amarildo?” significa, na verdade: “Cadê a sociedade que prometemos construir?”

A morte de Amarildo, foi uma falha de roteiro. Ele não deveria ter morrido (Foto: wiki)
A morte de Amarildo, foi uma falha de roteiro. Ele não deveria ter morrido (Foto: wiki)

A resposta é simples, triste e brutal: ela também sumiu no caminho.


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