O cinema irreverente de Pedro Almodóvar
Pedro Almodóvar é uma das figuras mais incandescentes do cinema mundial. Cineasta espanhol nascido em Calzada de Calatrava, em 1949, ele transformou o kitsch em linguagem, o escândalo em arte e a dor em espetáculo. Desde os tempos da “Movida Madrileña” — o turbilhão cultural que explodiu na Espanha pós-franquista — Almodóvar construiu uma filmografia que mistura melodrama, comédia, sexo, religião, cores saturadas e, claro, mulheres à beira de um ataque de nervos. E não por acaso, esse também foi o título de um de seus filmes mais emblemáticos.
O cinema de Almodóvar é, antes de tudo, um cinema das margens. Mas não das margens miseráveis ou sofredoras: são margens festivas, sexualmente fluídas, onde transbordam o desejo, o crime, a memória e a maternidade como temas centrais. Suas personagens femininas — muitas vezes interpretadas por atrizes que se tornaram suas musas, como Carmen Maura, Penélope Cruz e Rossy de Palma — parecem saídas de uma ópera barroca ou de um teatro grego de bairro: exageradas, apaixonadas, trágicas, intensas, humanas.
“Almodóvar incomoda porque oferece um espelho distorcido, mas honesto, do que somos quando deixamos cair a máscara da moral. Seu cinema não propõe redenção.”
A iconoclastia de Almodóvar não se limita ao conteúdo, mas se espalha como tinta acrílica na estética de seus filmes. Vermelhos vibrantes, azuis profundos, verdes impossíveis. Cada cor carrega simbolismo, ironia e emoção. Seus cenários são frequentemente irreais, quase como palcos montados com uma deliberada artificialidade que remete tanto a Douglas Sirk quanto a telenovelas latino-americanas. Há uma filosofia ali, que poderia muito bem ser resumida como: “Se for para sofrer, que seja com estilo”.
E embora Pedro Almodóvar seja frequentemente visto como um autor essencialmente espanhol — talvez o mais espanhol dos cineastas contemporâneos — sua obra dialoga profundamente com a cinefilia internacional. Ele bebe de Buñuel e Fassbinder, Hitchcock e Bergman, mas também do bolero, da zarzuela, da cultura queer e da televisão popular. Almodóvar é erudito e vulgar, refinado e espalhafatoso, um homem que transformou o exagero em instrumento de precisão narrativa.
Do subversivo ao consagrado: o pop barroco almodovariano
Não é pouca coisa que um cineasta outrora escandaloso, acusado de pornográfico, tenha se tornado símbolo de prestígio artístico na Europa. Almodóvar venceu dois Oscars, recebeu a Palma de Ouro de Roteiro e é constantemente festejado em festivais como Cannes, Veneza e Berlim. Seu cinema, contudo, não se domesticou. Continua desafiador, estranho, e por vezes, desconfortável — especialmente para quem ainda insiste em dividir o mundo em “bons costumes” e “degenerações culturais”.
Filmes como Fale com Ela (2002), A Pele que Habito (2011) e Dor e Glória (2019) mostram que sua maturidade artística não diluiu sua ousadia. Pelo contrário. A inquietação permanece. Se no passado ele provocava com travestis e conventos, hoje ele cutuca com memórias, silêncios, traumas e uma sofisticação dramática que só os grandes mestres conseguem alcançar. Em vez de envelhecer, Almodóvar fermentou.
Nos últimos anos, ele também tem flertado com formatos mais curtos e experimentais. Os seus dois recentes média-metragens em inglês, The Human Voice (2020), com Tilda Swinton, e Estranha Forma de Vida (2023), com Ethan Hawke e Pedro Pascal, mostram que Almodóvar está menos interessado em agradar e mais disposto a brincar com convenções. O faroeste homoerótico estrelado por dois cowboys que se desejam e se traem é, aliás, uma espécie de resposta queer a O Segredo de Brokeback Mountain, feita com mais cor, mais delírio e mais ironia.
O diretor continua sendo um nome fundamental na cartografia cinematográfica global. Trabalha atualmente em seu aguardado longa La Mujer del Laberinto, previsto para estrear no Festival de Veneza deste ano. A trama, segundo rumores, gira em torno de uma artista plástica cega que reconstrói a memória de sua filha desaparecida por meio de esculturas táteis. Ou seja: drama, obsessão e afeto — a Santíssima Trindade almodovariana.
Uma estética da liberdade absoluta
Almodóvar incomoda porque oferece um espelho distorcido, mas honesto, do que somos quando deixamos cair a máscara da moral. Seu cinema não propõe redenção. Ele revela o quão frágeis, teimosos, amorosos, mentirosos e ridículos podemos ser. E talvez por isso mesmo, seja um cinema profundamente libertador. Há algo de subversivamente terno em seus filmes. Uma ternura que não disfarça a dor, mas a ilumina com neons dramáticos e trilhas sonoras emocionadas.

Num tempo em que tantas obras audiovisuais buscam agradar algoritmos ou fingem profundidade com filtros em sépia, Almodóvar segue fiel ao seu espírito incendiário, folclórico e autoral. Ele filma como se dançasse bolero sobre cacos de espelho. E o faz com tanto domínio que só nos resta agradecer por ainda existir alguém disposto a filmar a vida como ela não é, mas poderia ser — caso ousássemos viver com mais intensidade, menos pudor e uma dose generosa de drama ibérico.
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