Os mísseis germânicos no tabuleiro
O anúncio feito por Berlim ontem quarta-feira (28), marca um novo e preocupante capítulo na guerra entre Rússia e Ucrânia. Ao lado do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, o chanceler alemão Friedrich Merz declarou que a Alemanha irá colaborar com Kiev no desenvolvimento de mísseis de longo alcance — e, mais do que isso, deixou claro que não haverá qualquer limitação no alcance desses armamentos. Para Moscou, representada pelo ministro das Relações Exteriores, Sergei Lavrov, trata-se de uma escalada inequívoca: a Alemanha, segundo ele, passou de apoio diplomático e logístico à participação direta no conflito.
O desenvolvimento conjunto de mísseis entre Alemanha e Ucrânia não é um movimento isolado. Ele está inserido em um contexto mais amplo de realinhamento estratégico europeu, com Berlim cada vez mais comprometida com a segurança do flanco leste da OTAN. Mas ao abandonar os antigos pudores da política externa pacifista alemã — traço marcante do pós-guerra — e apostar numa política armamentista ativa, o governo de Merz levanta dúvidas legítimas sobre até que ponto essa escalada será controlável.
“A guerra na Ucrânia já ultrapassou a marca de três anos e meio. O cansaço é visível em todos os envolvidos, e a paz permanece distante.”
Há muito tempo os países da OTAN têm fornecido armamento e inteligência à Ucrânia. Desde o início da invasão russa em fevereiro de 2022, tanques Leopard, drones, sistemas de defesa aérea, munições e apoio cibernético vêm sendo oferecidos pelos aliados ocidentais. A Alemanha, inicialmente relutante, tornou-se progressivamente mais envolvida — ainda que com ressalvas e contenções políticas. Agora, ao eliminar limites no alcance de mísseis produzidos com tecnologia alemã, Berlim cruza uma linha sensível.
Não se trata apenas de uma escolha militar. Trata-se de uma decisão política de peso, cujas implicações reverberam para muito além do campo de batalha ucraniano. Ao desenvolver mísseis de longo alcance, o potencial de atingir alvos em território russo aumenta — e com ele, o risco de retaliações diretas da Rússia contra países da OTAN. O princípio de “proporcionalidade” nas guerras modernas, embora debatido, continua sendo uma âncora para evitar a generalização de conflitos regionais. E, neste caso, essa âncora está sendo posta à prova.
A fronteira entre o apoio e o engajamento direto
Sergei Lavrov foi claro ao dizer que a Alemanha já participa da guerra. Se isso é verdade ou uma manobra retórica, o fato é que as fronteiras diplomáticas estão se tornando cada vez mais borradas. A Rússia, por sua vez, não se furta a utilizar essa narrativa para justificar uma intensificação de suas ações militares — ou mesmo ameaças mais incisivas contra alvos ocidentais. Em 2024, a simples especulação de envio de caças F-16 já gerou respostas duras do Kremlin. O desenvolvimento de mísseis com apoio alemão, por sua vez, é uma realidade, e não uma especulação.
Há ainda uma contradição inquietante no discurso europeu. Por um lado, a Alemanha segue reafirmando que seu objetivo é garantir a segurança da Ucrânia dentro de seu território, defendendo a integridade soberana do país. Por outro, ao permitir que armas com potencial de atingir alvos bem além das linhas de frente sejam produzidas, a mensagem implícita é de que ataques em profundidade podem ser considerados legítimos. Isso não apenas alimenta a retórica russa de autodefesa como também fragiliza as chances de negociações futuras.
Outro fator a ser observado é o impacto dessa decisão sobre a opinião pública alemã. A Alemanha, por razões históricas e culturais, tem cultivado uma aversão considerável ao militarismo. Mesmo com a invasão da Ucrânia, essa herança se manteve viva em setores significativos da sociedade. Com Merz optando por aprofundar a cooperação armamentista, será interessante observar como a coalizão de governo irá administrar possíveis tensões internas e cobranças por parte dos eleitores.

No tabuleiro geopolítico, o gesto de Berlim é também um recado para Washington. A Alemanha vem tentando afirmar uma postura de protagonismo estratégico na Europa, em contraste com a tradicional dependência da liderança norte-americana. A autonomia industrial na produção de armamentos, incluindo mísseis, é um sinal de que Berlim deseja não apenas apoiar Kiev, mas também consolidar uma posição própria na arquitetura de defesa do continente. Ainda assim, resta saber até que ponto essa ambição se sustentará diante de uma Rússia reativa e de uma Ucrânia exausta.
A guerra na Ucrânia já ultrapassou a marca de três anos e meio. O cansaço é visível em todos os envolvidos, e a paz permanece distante. Ao anunciar mísseis de longo alcance sem restrições, a Alemanha reescreve sua doutrina de segurança e arrisca ampliar as fraturas geopolíticas em curso. A decisão pode até ser compreendida dentro da lógica de dissuasão, mas dificilmente será neutra em seus efeitos. No xadrez da guerra, cada movimento conta. E este foi um lance audacioso — talvez temerário.
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