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Redescobrindo a cidade com olhar feminino

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As cidades têm gênero. Ainda que urbanistas do século passado torçam o nariz para essa afirmação, o fato é que o espaço urbano foi desenhado, majoritariamente, por e para homens. As mulheres, em sua multiplicidade de corpos e papéis, sempre habitaram esses territórios à margem: espremidas nas calçadas estreitas, sob olhares que julgam, evitam ou assediam; empurrando carrinhos de bebê por ladeiras mal pensadas; sentindo medo ao atravessar um parque vazio à noite. Redescobrir a cidade com um olhar feminino é, portanto, uma reconfiguração política da paisagem — e não uma mera questão estética.

Em tempos de reurbanização acelerada e de smart cities que falam mais de sensores do que de seres humanos, surge, com renovada força, a necessidade de entender como as mulheres interagem com os espaços urbanos. O transporte coletivo, por exemplo, segue sendo um campo minado para o corpo feminino. Da superlotação ao assédio sexual, os deslocamentos diários de uma trabalhadora são, muitas vezes, jornadas de resistência. A ausência de iluminação pública eficiente e de banheiros públicos decentes — dois elementos básicos da infraestrutura urbana — afeta desproporcionalmente as mulheres. Basta perguntar a qualquer uma que já precisou escolher entre fazer xixi na rua ou segurar até doer.

“A maquiagem feminista da política urbana tem sido, muitas vezes, só isso: maquiagem. Discursos empoderados em campanhas eleitorais que desaparecem depois do pleito.”

A reflexão, no entanto, não pode parar na denúncia. O movimento atual, capitaneado por urbanistas, arquitetas, coletivos feministas e até algumas prefeituras mais progressistas, visa propor soluções. E é aí que o “olhar feminino” extrapola a crítica e vira ferramenta. Não se trata de pintar os postes de rosa ou fazer ciclovias em forma de coração. É sobre escutar quem vive a cidade no cotidiano miúdo — mulheres que saem para trabalhar, levar filhos à escola, cuidar de parentes, estudar à noite, circular com medo e mesmo assim seguir adiante.

Por isso, projetos como o City for Her em Barcelona, o Urban95 que pensa cidades do ponto de vista de uma criança (e, por consequência, de quem cuida dela), e iniciativas brasileiras como o Vamos Juntas? mostram como a equidade urbana começa com a escuta e termina na reorganização do concreto.

Entre a calçada e o concreto armado

Falar de cidade com olhar feminino também é repensar o que se entende por mobilidade, segurança, lazer e pertencimento. Um parque que pareça seguro para correr às seis da manhã. Um terminal de ônibus onde haja uma sala de amamentação. Uma rua onde o comércio seja variado e bem iluminado, o que aumenta o fluxo de pessoas e diminui a violência. Tudo isso tem impacto real na vida de uma mulher — e não aparece nos planos diretores tomados por engenheiros que nunca usaram um carrinho de feira em calçada quebrada.

A ironia é que muitos desses problemas já foram apontados há décadas. Jane Jacobs, nos anos 1960, já denunciava a monotonia dos projetos urbanos feitos por tecnocratas que ignoravam a vida cotidiana. Ninguém ouviu — ou não ouviu o suficiente. Agora, a roda gira e volta à sua tese: cidades boas são aquelas que acolhem a diversidade. Mas só agora se começa a entender que “diversidade” inclui o recorte de gênero com centralidade. Não é “coisa de mulherzinha”. É projeto de cidade viável.

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No Brasil, algumas iniciativas merecem nota. São Paulo, por exemplo, começou a testar em bairros periféricos um programa de urbanismo tático com foco em mulheres — transformando pontos de ônibus em lugares mais seguros e confortáveis, com bancos adequados, cobertura, arte urbana e presença de câmeras. Em Recife, um grupo de arquitetas mapeou as zonas mais perigosas para mulheres e propôs intervenções pontuais de baixo custo, como poda de árvores, ampliação de calçadas e instalação de luminárias solares. A prefeitura ouviu. Milagre? Não: pressão organizada.

Ainda assim, o ceticismo é necessário. A maquiagem feminista da política urbana tem sido, muitas vezes, só isso: maquiagem. Discursos empoderados em campanhas eleitorais que desaparecem depois do pleito. Prefeitos que posam com coletivos femininos, mas mantêm contratos com empreiteiras que ignoram o fator gênero. Não adianta pintar muro de rosa e seguir construindo cidades hostis a quem carrega sacolas e histórias nos ombros.

A influente Jane Jacobs já falava da monotonia dos projetos urbanos  (Foto: ArchDaily)
A influente Jane Jacobs já falava da monotonia dos projetos urbanos (Foto: ArchDaily)

Redescobrir a cidade com olhar feminino é uma provocação que desmonta séculos de urbanismo patriarcal. É enxergar o cotidiano como campo de batalha e de criação. É entender que o banco de uma praça pode ser tão revolucionário quanto uma lei, se ele permitir a uma mãe descansar sem medo. É colocar o afeto, a escuta, a segurança e o cuidado como parâmetros de planejamento urbano. Parece utopia? Pode até ser. Mas, como dizia a própria Jane Jacobs: “As cidades têm a capacidade de nos proporcionar algo, se tivermos a sabedoria de enxergar.” E essa sabedoria, definitivamente, não é monocromática — nem masculina.


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