Tragédia da Piedade: bala num imortal
A literatura brasileira tem seus mitos e seus mártires. Alguns morrem de tuberculose, outros enlouquecem, outros são apagados pela indiferença. E há os que tombam de maneira brutal, como ocorreu com Euclydes da Cunha. Sua morte, em 15 de agosto de 1909, no bairro da Piedade, Rio de Janeiro, não foi apenas uma tragédia pessoal, mas uma ferida aberta na intelectualidade brasileira. Um símbolo da tensão entre o Brasil da palavra e o Brasil da pólvora.
Autor de Os Sertões, obra seminal que inaugurou compreensão sobre o país profundo, Euclydes não era apenas um escritor — era engenheiro, militar, sociólogo, jornalista e, sobretudo, um intérprete do Brasil. Um intelectual comprometido com seu tempo. Como ele morreu, alvejado por tiros desferidos por Dilermando de Assis, então amante de sua esposa, transformou a tragédia privada em espetáculo público. Um imortal abatido não por críticas literárias ou pelo esquecimento, mas por uma arma de fogo, num caso rumoroso que mistura honra, adultério e hipocrisia social.
“Sua obra sobrevive, mas seu assassinato também sobrevive como símbolo. Não de ciúmes domésticos, mas de um país incapaz de proteger aqueles que ousam pensar.”
Dilermando era um jovem oficial do Exército, mais de dez anos mais novo que Euclydes, e amante declarado de Ana da Cunha. A história é conhecida: após desentendimentos conjugais e suspeitas de traição, Euclydes foi armado até a casa do rival e lá encontrou a morte. Não foi uma troca de tiros, foi praticamente uma execução. Uma história melodramática, que em outros tempos seria apenas folhetim, mas que no Brasil virou tragédia nacional.
O mais trágico de tudo foi ver o nome de Euclydes da Cunha, já consagrado pela obra monumental que narra o massacre de Canudos, ser reduzido à alcunha de “o marido traído”. Um intelectual que ousou decifrar as contradições do Brasil profundo acabou reduzido a personagem de páginas policiais. Sua morte revela muito mais sobre o país do que qualquer retrato biográfico permitiria.
Um país que mata seus intérpretes
A chamada Tragédia da Piedade não foi apenas o desfecho violento de um triângulo amoroso; foi também um retrato cruel da sociedade brasileira da virada do século XX. O adultério era um escândalo, mas o assassinato era relativizado como “defesa da honra”. No fim, a justiça absolveu Dilermando de Assis. Para o tribunal e para parte da opinião pública, Euclydes é que “procurou a morte”. Era o Brasil normalizando a violência e desqualificando seus melhores intérpretes.
Talvez o que mais incomode nessa história seja o contraste entre o homem e sua morte. Euclydes da Cunha, que foi à Guerra de Canudos para descrever os sertanejos como “fantoches ridículos” e voltou transformado, escrevendo que ali estava “um outro Brasil”, mais profundo e injustiçado, terminou seus dias no chão de uma varanda suburbana. Um homem que compreendeu o Brasil como poucos foi vencido pelas miudezas burguesas, pela masculinidade ferida e pela cultura da violência banal.
Não à toa, Monteiro Lobato resumiria o episódio de forma lapidar: “Dilermando matou a carne de Euclydes; Canudos matou-lhe o espírito.” Era o retrato perfeito do país que mata seus escritores — pela bala ou pelo desprezo. Desde então, o Brasil nunca soube lidar bem com seus pensadores incômodos. Preferiu esquecê-los ou caricaturá-los.
Passados mais de 100 anos da Tragédia da Piedade, a reflexão continua atual. Ainda hoje, o Brasil hesita entre valorizar seus intelectuais ou transformá-los em alvos, seja de armas, seja de ataques morais, seja pelo simples esquecimento. A morte violenta de Euclydes foi o prenúncio de um país onde a brutalidade prevalece sobre a inteligência, onde a cultura da força se impõe sobre a cultura da palavra.

Sua obra sobrevive, mas seu assassinato também sobrevive como símbolo. Não de ciúmes domésticos, mas de um país incapaz de proteger aqueles que ousam pensar. A bala que matou Euclydes da Cunha não foi apenas disparada por um rival amoroso. Foi, simbolicamente, disparada por um Brasil que desconfia da inteligência e muitas vezes a condena à morte.
Euclydes continua imortal na Academia Brasileira de Letras, mas foi mortal no Brasil real. E, por mais incômodo que isso seja, continua sendo assim até hoje. Em tempo: o filho de Euclydes (que tentou vingar o pai) também foi morto por Dilermando.
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Anacleto Colombo assina a seção Não Perca!, onde mergulha sem colete na crônica sombria da criminalidade, da violência urbana, das máfias e dos grandes casos que marcaram a história policial. Com faro apurado, narrativa envolvente e uma queda por detalhes perturbadores, ele revela o lado oculto de um mundo que muitos preferem ignorar. Seus textos combinam rigor investigativo com uma dose de inquietação moral, sempre instigando o leitor a olhar para o abismo — e reconhecer nele parte da nossa sociedade. Em um portal dedicado à informação com profundidade, Anacleto é o repórter que desce até o subsolo. E volta com a história completa.
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