Wannabe: o estrondo britânico de 1996
Quando “Wannabe” explodiu nas rádios em 1996, o mundo parecia estar num ponto de virada entre a ressaca do grunge e o frenesi da cultura pop. Kurt Cobain já havia partido há dois anos, o Britpop ainda reinava com Oasis e Blur duelando pela coroa da Inglaterra, e Tony Blair prometia um “novo trabalhismo” que soava tão pop quanto qualquer refrão da época. O mundo, de repente, estava pronto para algo que fosse menos angústia e mais glitter — e foi exatamente aí que surgiram cinco jovens com sapatos plataforma, sotaques diferentes e um manifesto que parecia simples, mas era devastadoramente eficaz: “Girl Power”.
A estreia das Spice Girls não foi apenas o nascimento de um grupo musical, mas de um fenômeno midiático global. “Wannabe”, com seu videoclipe filmado em um só plano (ou pelo menos fazendo parecer que era), foi uma injeção de energia caótica em meio à pasteurização crescente da indústria musical. A canção, que falava de amizade feminina de forma quase infantil, escondia um poder simbólico surpreendente: o de mostrar que garotas comuns podiam dominar o mundo com atitude, humor e coreografias sincronizadas. O feminismo pop, que seria depois reciclado por artistas como Beyoncé, começou ali, numa escadaria de hotel londrino, com Mel B, Mel C, Geri, Emma e Victoria invadindo um jantar de terno e gravata.
“O mundo vivia um interlúdio entre o analógico e o digital. Havia uma sensação de leveza e esperança antes da hiperconectividade corroer o encanto das novidades. As Spice Girls foram, em certo sentido, a última grande banda pop que pertenceu ao século XX antes da internet transformar o conceito de fama.”
“Wannabe” foi um grito de guerra travestido de brincadeira. Era catchy, contagiante e irritantemente feliz. O público, sedento por algo que não o fizesse pensar em flanelas ou depressão existencial, abraçou a proposta. Em pouco tempo, o single alcançou o primeiro lugar em 37 países, tornando-se a canção de estreia mais bem-sucedida de um grupo feminino na história.
O sucesso não foi apenas sonoro — foi estético e comportamental. Cada Spice tinha um arquétipo bem definido, quase como personagens de um desenho animado: a esportiva, a sofisticada, a atrevida, a inocente e a selvagem. Era marketing de precisão cirúrgica.
O mundo antes do “zig-a-zig-ah”
Para entender o impacto de “Wannabe”, é preciso lembrar o cenário global de 1996. Bill Clinton governava os Estados Unidos com seu charme saxofonista; no Reino Unido, John Major tentava manter viva uma era conservadora que já parecia anacrônica. O Brasil assistia a um Fernando Henrique Cardoso em seu primeiro mandato, enquanto a internet dava seus primeiros passos fora das universidades. A MTV ainda ditava moda e comportamento, e o YouTube sequer existia — o clipe das Spice Girls era algo que você esperava para ver na televisão, e não que procurava no celular enquanto esperava o metrô.
O mundo vivia um interlúdio entre o analógico e o digital. Havia uma sensação de leveza e esperança antes da hiperconectividade corroer o encanto das novidades. As Spice Girls foram, em certo sentido, a última grande banda pop que pertenceu ao século XX antes da internet transformar o conceito de fama. Eram produto e produtoras de uma época em que a ingenuidade ainda era possível.
O curioso é que “Wannabe”, uma música aparentemente fútil, ressoou como um símbolo de autonomia. Não havia profundidade filosófica em seus versos, mas havia algo de libertador em sua celebração da amizade e da irreverência. As meninas não pediam permissão — elas tomavam o palco, as câmeras e as manchetes. E, goste-se ou não, ensinaram a uma geração de adolescentes que “girl power” podia ser tão rentável quanto revolucionário.
Mas a revolução tinha cheiro de contrato publicitário. O que o feminismo acadêmico discutia em termos de igualdade, as Spice Girls traduziam em slogans, roupas coloridas e bonecas colecionáveis. O capitalismo soube reconhecer o potencial de transformar empoderamento em mercadoria — e o fez com eficiência britânica. Ainda assim, há algo de genial na forma como elas tornaram o feminismo palatável para as massas, abrindo espaço para debates posteriores sobre representatividade, mesmo que involuntariamente.
O sucesso de “Wannabe” redefiniu o pop. De repente, a indústria percebeu que grupos femininos podiam dominar as paradas — e o fizeram. Destinos diferentes aguardavam Destiny’s Child, Sugababes, Girls Aloud e, mais tarde, Little Mix, todas herdeiras diretas do modelo Spice. As cinco britânicas provaram que música pop e poder feminino não precisavam ser termos excludentes.
Hoje, quase trinta anos depois, “Wannabe” ainda é um relicário de um tempo em que o pop não pedia desculpas por ser leve. Sua estética, tão datada quanto charmosa, virou referência nostálgica — símbolo de uma era que acreditava no otimismo colorido. Reouvir “Wannabe” é reencontrar um espírito que o cinismo do século XXI quase apagou: o da espontaneidade, da diversão sem culpa.

O estrondo britânico de 1996 ecoa ainda, entre refrões pegajosos e plataformas altíssimas, lembrando-nos que, por um breve instante, o mundo inteiro dançou ao som de um grito adolescente por amizade e liberdade — e, ironicamente, talvez nunca tenha sido tão sério.
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