Sly Stone: morto, antes, esquecido…
Poucos músicos moldaram a alma da música negra americana como Sylvester Stewart, mais conhecido como Sly Stone. E, no entanto, a notícia de sua morte, aos 82 anos, vítima de DPOC (Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica), no dia 9 de junho, chegou com um estranho silêncio, quase como se estivesse cumprindo um roteiro cruel: Sly já havia sido esquecido antes mesmo de sua partida. A ironia é que sua influência jamais desapareceu. O som de Sly & The Family Stone ecoa, ainda que por linhas tortas, em boa parte da música pop, soul e funk contemporânea. Mas o homem, o criador, se apagou lentamente, consumido por excessos e por um sistema que não sabe cuidar dos seus gênios.
Nos anos 60 e 70, Sly Stone não era apenas uma figura importante: era uma revolução ambulante. Fundindo psicodelia, funk, rock e soul, ele criou um som que era puro futuro. “Stand!”, “There’s a Riot Goin’ On”, “Fresh” — discos que não envelhecem, só adquirem novas camadas. Sly foi, para a música negra, o que os Beatles foram para o rock inglês: um divisor de águas, uma mente inquieta que queria mais, sempre mais. Mas, enquanto os Beatles tiveram fortuna, homenagens e estabilidade, Sly terminou num pequeno apartamento subsidiado pelo governo, vivendo de esporádicos direitos autorais e da generosidade de poucos fãs fiéis.
“Sly Stone não foi só um músico brilhante. Foi uma revolução desperdiçada. E agora, morto, parece que finalmente vão tentar lembrar do que esqueceram em vida.”
É inevitável dizer que Sly Stone foi vítima também de si. A fama colossal trouxe drogas, paranoias, isolamento. Já nos anos 80 ele era uma sombra do que fora. Enquanto Prince, Rick James e George Clinton colhiam os frutos do terreno que ele semeara, Sly afundava em processos judiciais, dívidas e desaparecimentos. Não foi por acaso que sua breve aparição no Grammy de 2006, com moicano loiro e semblante perdido, causou mais pena do que nostalgia.
A morte de Sly Stone não é só a morte de um artista importante. É um sintoma repetido na cultura americana (e mundial): a dificuldade em lidar com criadores que se tornam maiores do que as estruturas ao redor. Artistas negros, especialmente, tendem a ser celebrados enquanto rendem lucro, e descartados quando deixam de ser rentáveis ou confortáveis. Foi assim com Sly. Sua genialidade foi explorada à exaustão por gravadoras e empresários. Quando começou a falhar — não por falta de talento, mas por uma vida pessoal devastada —, foi jogado para escanteio.
O gênio que ninguém soube cuidar
O caso de Sly é ainda mais gritante quando lembramos o impacto social de sua música. Ele foi um dos primeiros a unir uma banda multirracial e mista de gênero nos palcos mais importantes da América segregada dos anos 60. Isso não era só estética, era política. “Everyday People” não era apenas uma música bonitinha; era uma mensagem necessária. Mas a indústria cultural é seletiva até na hora de construir lendas. Sly não tinha o perfil do herói disciplinado. Era um gênio bagunçado, com as contradições e autossabotagens típicas de quem rompe limites.
Nos últimos anos, houve tentativas modestas de reabilitar sua imagem. Sua autobiografia, lançada em 2023, trouxe algumas entrevistas reveladoras, mostrando um Sly lúcido, ainda que ressentido. Documentários foram feitos, algumas reedições de discos surgiram, mas tudo em escala tímida, insuficiente para alguém que praticamente inventou o groove moderno. Ao morrer, Sly Stone não estava em turnê de reencontro, não estava na capa de revistas, não era assunto de trend topics. Sua morte foi digna de nota de rodapé, o que diz mais sobre nós do que sobre ele.

Talvez agora, como costuma acontecer, venha o resgate tardio. Os obituários elogiarão seu papel pioneiro, rádios tocarão “Family Affair” e “If You Want Me to Stay”, alguns artistas lembrarão publicamente de suas dívidas criativas com ele. Mas nada disso muda que Sly morreu como viveu nos últimos 40 anos: fora do foco, esquecido por quem deveria tê-lo mantido no panteão da cultura popular.
Sly Stone não foi só um músico brilhante. Foi uma revolução desperdiçada. E agora, morto, parece que finalmente vão tentar lembrar do que esqueceram em vida. Como sempre, tarde demais.
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