Estudiantes vs Milan: o couro comeu!
É quase um lugar-comum dizer que o futebol sul-americano dos anos 60 era “raçudo”, “pegado” e “sem frescura”. Mas a final intercontinental de 1969 entre Estudiantes e Milan ultrapassou qualquer noção de garra e entrou para o terreno da brutalidade pura. O jogo em Buenos Aires, depois do confortável 3 a 0 do Milan em Milão, transformou-se em um teatro de guerra disfarçado de partida de futebol. Não houve apenas disputa física — houve cotovelos voando, café quente sobre adversários, acusações de traição e até prisão de jogador no pós-jogo. Era futebol, mas parecia roteiro de filme noir.
Aquele Estudiantes era um time símbolo do pragmatismo de Osvaldo Zubeldía — culto da catimba, da marcação individual sufocante e da preparação quase científica. Não bastava apenas marcar, tinha que intimidar. E intimidação foi o que não faltou. Do aquecimento ao apito final, os italianos foram tratados como invasores indesejados. O episódio virou um manual de como destruir a imagem de uma competição inteira. Se o Intercontinental já vinha sendo criticado pela violência e pelo choque de estilos entre Europa e América do Sul, 1969 foi o ponto de ruptura definitivo.
“No fundo, essa partida simboliza uma encruzilhada histórica. De um lado, a Europa começava a profissionalizar padrões médicos, táticos e arbitrais; de outro, a América do Sul vivia regimes militares e usava o futebol como palco de honra nacional.”
O que se viu em La Bombonera naquele dia beirou a surrealidade. Chutões de bola durante o aquecimento, café fervente no túnel, supostas agulhas para espetar jogadores — e nada disso no campo das metáforas. Pierino Prati ficou inconsciente e continuou em campo por mais 20 minutos, um retrato grotesco de uma época em que concussão era tratada como frescura. O goleiro Alberto Poletti, em vez de luvas macias, parecia usar luvas de boxe, acertando Gianni Rivera e caçando Combin como quem elimina uma praga.
Combin, aliás, encarnou o drama máximo daquela noite. Argentino naturalizado francês, foi considerado “traidor” pela torcida local. Primeiro apanhou, depois desmaiou, e por fim foi parar na cadeia, acusado de não cumprir o serviço militar. Se o futebol já era uma guerra simbólica, com Combin ele virou guerra literal. Foi preciso explicar às autoridades que ele era cidadão francês para ser liberado. E assim, entre cotovelos e canetadas burocráticas, a final intercontinental se dissolveu num circo diplomático.
Noventa minutos de caça, décadas de vergonha
A imprensa não perdoou. A Gazzetta dello Sport estampou “Noventa minutos de caçada a um homem”, frase que ficaria colada à memória desse jogo. Do lado argentino, a resposta foi “Os ingleses estavam certos”, evocando a célebre crítica de Alf Ramsey em 1966, quando chamou os argentinos de “animais”. A troca de ofensas pela mídia dos dois continentes mostrou que o Intercontinental, longe de unir mundos, estava criando uma nova Guerra Fria futebolística.
A AFA e o governo argentino foram obrigados a reagir. O ditador Juan Carlos Onganía chamou o representante do Estudiantes e exigiu “as mais severas medidas em defesa do bom nome do esporte nacional”. O resultado: banimento vitalício para Poletti, 30 jogos para Suárez, 20 para Manera e até um mês de cadeia para os envolvidos mais violentos. Uma reação inédita, mas tardia, que soou mais como gesto para inglês ver — ou, no caso, italiano.
Esse jogo deixou marcas profundas na reputação do Estudiantes. De clube inovador e calculista, passou a ser sinônimo de brutalidade. E a competição Intercontinental, que pretendia coroar o “melhor clube do mundo”, ganhou a fama de duelo sangrento, um “MMA com chuteira”. O episódio de 1969 não apenas afastou clubes europeus nos anos seguintes, como serviu para fortalecer a narrativa de que o futebol sul-americano era sujo, desleal e atrasado. Uma caricatura injusta, mas convenientemente reforçada por imagens de narizes quebrados e jogadores algemados.
No fundo, essa partida simboliza uma encruzilhada histórica. De um lado, a Europa começava a profissionalizar padrões médicos, táticos e arbitrais; de outro, a América do Sul vivia regimes militares e usava o futebol como palco de honra nacional. Era uma época em que a honra valia mais do que o fair play, e onde perder em casa era inadmissível. Assim, a violência virou linguagem.
Se há uma lição duradoura dessa final, é que o futebol não é apenas técnica, nem apenas paixão: é também política, identidade e poder. O Estudiantes-Milan de 1969 mostrou o pior lado desse poder — a instrumentalização do jogo como território de guerra cultural. Em vez de um título, o que se disputava ali era um conceito de masculinidade, de pátria, de revanche contra o “colonialismo” europeu. Combin virou bode expiatório, o Milan virou inimigo público, e o futebol virou ringue.
O Intercontinental só recuperaria sua credibilidade muitos anos depois, reformatado como Mundial de Clubes, com sedes neutras, árbitros mais rigorosos e menos espaço para arruaça. Mas a lembrança daquele couro comendo na Bombonera permanece como um aviso eterno: quando o fair play é esquecido e a catimba vira violência, o espetáculo perde a graça e ganha cicatrizes. A vitória do Milan no agregado pouco importa; o que ficou para a história foi o escândalo.

E talvez seja esse o aspecto mais irônico de toda a história. Ao tentar intimidar, o Estudiantes acabou intimidando não apenas o rival, mas a própria reputação do futebol sul-americano. O título simbólico foi do Milan, mas o troféu moral — se é que podemos chamar assim — não ficou com ninguém. Ficou só a memória amarga de uma noite em que o futebol deixou de ser jogo e virou duelo de trincheira.
No fim, “o couro comeu” não é mera expressão popular: é a síntese perfeita de um dos episódios mais infames da história do futebol mundial. Uma partida em que a bola virou munição, a arquibancada virou tropa de choque e o gramado, campo minado. Um lembrete de que, por mais que o futebol seja paixão, há limites entre competitividade e barbárie. E em 1969, em Buenos Aires, esse limite foi demolido a chute e cotovelada.
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Anacleto Colombo assina a seção Não Perca!, onde mergulha sem colete na crônica sombria da criminalidade, da violência urbana, das máfias e dos grandes casos que marcaram a história policial. Com faro apurado, narrativa envolvente e uma queda por detalhes perturbadores, ele revela o lado oculto de um mundo que muitos preferem ignorar. Seus textos combinam rigor investigativo com uma dose de inquietação moral, sempre instigando o leitor a olhar para o abismo — e reconhecer nele parte da nossa sociedade. Em um portal dedicado à informação com profundidade, Anacleto é o repórter que desce até o subsolo. E volta com a história completa.
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