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CLT e Geração Z: água e óleo

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A Consolidação das Leis do Trabalho, a gloriosa CLT, é o arcabouço jurídico que, desde 1943, tenta organizar a relação entre capital e trabalho no Brasil. Foi moldada num tempo em que Getúlio Vargas posava de “pai dos pobres” e a indústria dava o ritmo da economia. De lá para cá, muita coisa mudou: o Brasil deixou de ser eminentemente fabril, o mundo se digitalizou, as formas de trabalho se fragmentaram, mas a CLT continua lá, pesada como uma Constituição paralela. A questão é que, para a chamada Geração Z — nascida no fim dos anos 1990 e começo dos anos 2000 —, essa velha senhora da legislação soa mais como algema do que como proteção.

A juventude contemporânea tem uma relação quase alérgica com o emprego formal. Carteira assinada? Benefícios? Décimo terceiro? Tudo isso parece, para muitos, uma forma requintada de aprisionamento. O que essa geração valoriza, acima de tudo, é a ideia de liberdade — liberdade de horários, de múltiplas fontes de renda, de experimentar sem grandes compromissos. Em vez de esperar cinco anos para ser promovido a analista pleno, preferem abrir uma loja online, fazer uns freelas, criar conteúdo para a internet, investir em cripto e, quem sabe, viralizar um vídeo no TikTok que lhes renda mais do que um salário mínimo em uma semana.

“A pergunta que resta é: será que estamos diante de um divórcio irreversível entre a CLT e a Geração Z? Talvez não. O mais provável é que vejamos adaptações, híbridos e flexibilizações que tentem conciliar direitos mínimos com a fluidez das novas formas de trabalho.”

É claro que não se trata de um fenômeno exclusivo do Brasil. No mundo todo, jovens têm rejeitado o modelo tradicional de “trabalhar das 9 às 18” em prol de carreiras fluidas, empreendimentos digitais e ocupações intermitentes. Mas, no Brasil, o contraste é ainda mais gritante porque a CLT foi desenhada para um país onde as fábricas de tecido e as metalúrgicas eram o coração da economia, não as startups e as fintechs. A cultura de estabilidade, carteira de trabalho com páginas carimbadas e aposentadoria no horizonte não seduz quem cresceu em meio à volatilidade digital e ao culto da autonomia.

Há, porém, uma ironia nisso tudo. Se por um lado a juventude rejeita o que chama de “amarras” da CLT, por outro é justamente esse sistema que garante pisos de dignidade mínima. Muitos desses jovens, que sonham em “não ter chefe”, acabam descobrindo que liberdade sem direitos pode se parecer bastante com precarização. O problema é que o discurso pró-independência foi embalado num verniz de empreendedorismo, e a narrativa do “seja dono do seu próprio tempo” soa mais sexy do que “assine sua carteira de trabalho e acumule FGTS”.

A rebeldia seletiva da Geração Z

O curioso é que a Geração Z não é contra regras em geral. Ao contrário: ela adora manuais de convivência digital, códigos de conduta em redes sociais e até mesmo pautas rígidas de comportamento. Mas quando o assunto é trabalho, as regras da CLT parecem um livro sagrado escrito em latim. O jovem contemporâneo quer proteção, mas sem burocracia; quer dinheiro, mas sem hierarquia; quer férias, mas sem patrão. É uma rebeldia seletiva, que critica o modelo antigo sem necessariamente oferecer uma alternativa sustentável.

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Parte dessa ojeriza vem do fato de que os jovens viram seus pais e avós dedicarem décadas a empresas que, no fim, demitiram em massa ou faliram. A tal “estabilidade” vendida pela carteira assinada mostrou-se uma miragem. Quem nasceu num mundo em que a volatilidade é regra desconfia, com razão, de promessas de segurança. A CLT, nesse sentido, é vista como um contrato de casamento numa era de relacionamentos líquidos.

Mas também há um componente de idealização. A vida sem CLT muitas vezes é pintada com cores românticas: trabalhar de qualquer lugar do mundo, ganhar dinheiro enquanto dorme, viver de paixões. O problema é que a realidade costuma ser menos instagramável: freelas que atrasam pagamento, clientes que somem, algoritmos que mudam sem aviso. A ausência de amarras vem acompanhada da ausência de garantias — e é aí que o jovem se vê entre a cruz da CLT e a espada da informalidade.

A pergunta que resta é: será que estamos diante de um divórcio irreversível entre a CLT e a Geração Z? Talvez não. O mais provável é que vejamos adaptações, híbridos e flexibilizações que tentem conciliar direitos mínimos com a fluidez das novas formas de trabalho. O que está claro, no entanto, é que insistir em aplicar uma lógica de 1943 a uma juventude que nasceu no século digital é como tentar encaixar água e óleo num mesmo copo: não se misturam.

A juventude tem uma relação quase alérgica com o emprego formal (Foto: Arquivo)
A juventude tem uma relação quase alérgica com o emprego formal (Foto: Arquivo)

No fim, a Geração Z pode até rejeitar a CLT, mas, paradoxalmente, talvez precise dela mais do que imagina. Porque liberdade sem rede de proteção pode ser apenas outro nome para insegurança. E, como sempre, o Brasil ainda não decidiu se prefere a tradição das leis trabalhistas ou a aventura do improviso.


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