Galopeira: romântica e bem sacana…
Há canções que desafiam o tempo, o espaço e até a lógica sentimental. Galopeira é uma dessas joias raras da cultura popular que transitam entre o lamento romântico e a malícia disfarçada, sempre embalada pelo compasso cadenciado da guarania. Composta pelo paraguaio Mauricio Cardoso Ocampo e imortalizada em tantas vozes — de Pedro Bento a Perla, passando por Chitãozinho & Xororó e Donizeti — a música se tornou um clássico que, a cada geração, renasce com uma nova cara. Afinal, qual outra canção conseguiria caber tão bem num baile de roça quanto num show de heavy metal, como provou Bruno Sutter em 2015?
É curioso pensar que uma canção com esse título tão sugestivo tenha atravessado fronteiras e décadas sem perder a aura de duplo sentido. Afinal, quem é essa Galopeira? Uma mulher arrebatadora, um amor impossível ou apenas uma metáfora para a intensidade do desejo? O nome, por si só, já carrega uma picardia: galopear pode ser correr desenfreado, mas também pode ser lido como um movimento bem mais íntimo, corporal e extremamente sexual. Ninguém precisa dizer isso em voz alta — a malícia está justamente em deixar o não-dito martelar na cabeça de quem escuta.
“Há quem torça o nariz para essa leitura sacana, alegando que se trata apenas de uma canção romântica tradicional. É um argumento válido, mas convenhamos: ninguém chama uma mulher de Galopeira à toa. O termo é apelido, metáfora e convite.”
Outro detalhe fascinante é o contraste entre letra e ritmo. Enquanto a guarania sugere melancolia e lamento, a interpretação geralmente ganha uma força quase performática, sobretudo nas vozes sertanejas brasileiras. Donizeti, por exemplo, transformou o simples ato de sustentar a palavra “Galopeira” em façanha vocal, ao ponto de ser lembrado até hoje como “o garoto da Galopeira”. Já Perla, a cantora paraguaia que construiu carreira no Brasil, imprimiu à música uma dramaticidade latina que a fez atravessar gerações. A partir daí, Chitãozinho & Xororó surfaram a onda e consolidaram a canção no repertório sertanejo romântico.
Esse percurso revela algo maior: Galopeira nunca foi apenas uma música. É um objeto cultural que sobreviveu por mutação. Como um camaleão, ela se adapta ao intérprete e ao público. Pedro Bento, coautor e ícone sertanejo, deu o tom inicial. Depois vieram os exageros de Donizeti, a latinidade de Perla, a sofisticação vocal da dupla Chitãozinho & Xororó, até desembocar na versão caricatural — mas não menos interessante — do heavy metal brasileiro. O que une todas essas fases é a mistura improvável de sentimentalismo rasgado e sensualidade insinuada.
Entre o romantismo e a malícia
Dizer que Galopeira é apenas romântica seria subestimar sua potência cultural. Ela também é sacana — e isso não é defeito, mas parte de seu charme. Em terras onde a música popular sempre soube usar metáforas para falar de amor, sexo e desejo, Galopeira se insere como uma obra que transita entre o choro e a malícia. Quem canta, muitas vezes, não sabe se está exaltando um grande amor perdido ou descrevendo um galope que beira o erótico. Essa ambiguidade é a sua força, seu tempero eterno.
No entanto, não deixa de ser irônico que tanto drama tenha sido eternizado em um cenário de vozes sertanejas masculinas que, na maioria das vezes, cantavam como se a paixão fosse um fardo pesado demais para o coração. Talvez por isso a entrada de Perla tenha sido tão marcante: foi a primeira vez que a Galopeira ganhou voz feminina, invertendo a lógica e dando mais camadas à narrativa. Se antes ela era apenas objeto de desejo e dor, com Perla a música passou a ser um grito de quem também sabe reivindicar lugar no jogo da sedução.
Há quem torça o nariz para essa leitura sacana, alegando que se trata apenas de uma canção romântica tradicional. É um argumento válido, mas convenhamos: ninguém chama uma mulher de Galopeira à toa. O termo é apelido, metáfora e convite. É impossível separar o drama do duplo sentido. Talvez esteja aí o segredo de sua longevidade: Galopeira nunca se entrega por completo, está sempre sugerindo mais do que dizendo.

Ao final, o que resta é o legado. Pedro Bento se despediu em 2019, vítima de pneumonia, deixando para trás não apenas a coautoria de uma canção famosa, mas um símbolo de como a música popular consegue sobreviver à morte de seus criadores. Galopeira continua ecoando em rádios do interior, em karaokês urbanos e até em festivais de rock. Cada nova interpretação é uma chance de revisitar esse híbrido de lágrimas e malícia, de saudade e sacanagem. Uma canção que, como poucas, consegue ser ao mesmo tempo, romântica e sacana — e talvez por isso nunca envelheça.
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