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A arte singular de Beatriz Milhazes

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Beatriz Milhazes, nascida em 1960 no Rio de Janeiro, talvez seja — para usar uma expressão que irrita alguns puristas — a maior artista plástica brasileira em atividade. E não por falta de concorrência, mas porque seu trabalho conseguiu algo raríssimo: ser simultaneamente pop e erudito, tropical e cosmopolita, decorativo e conceitual, sem pedir desculpas por isso. Crescida no ambiente artístico carioca, filha de uma historiadora de arte e irmã da coreógrafa Marcia Milhazes, Beatriz sempre trafegou entre linguagens, cores e movimentos. Milhazes não se encolhe diante do clichê: ela abraça o excesso, revira o carnaval com pinceladas operísticas e devolve à elite internacional aquilo que o Brasil teima em esconder atrás de crises políticas e cambiais — uma imaginação indestrutível.

No mercado, seus quadros atingem cifras que fariam os modernistas ruborizarem; na crítica, ela permanece objeto de debates acalorados, desses que atravessam galerias e mesas de bar. Há quem a acuse de produzir “arte bonita demais”, como se o belo fosse um pecado estético. É uma crítica velha, daquelas que já foram usadas contra Klimt, contra Portinari e até contra muralistas mexicanos. No caso de Milhazes, porém, o argumento ganha contornos curiosos: sua paleta coloridíssima, seus arabescos giratórios, seus círculos quase hipnóticos parecem incomodar quem defende que arte brasileira só é “séria” quando fala de sofrimento. Milhazes fala de prazer — e isso, aos olhos de alguns, é suspeito. É como se a beleza fosse um tipo de contrabando intelectual, algo que precisa ser revistado antes de entrar na alfândega da crítica.

“O estranhamento que Milhazes provoca também tem raiz na forma como seu trabalho se encaixa no mercado global de arte. Ela circula com naturalidade em galerias de Miami, Nova York e Londres. Seus quadros atingem valores altíssimos — o que, no Brasil, costuma gerar suspeitas. “Se é caro, deve ser bobagem para gringo ver”, dizem alguns com aquela ironia defensiva que o país domina com maestria.”

Mas o que realmente impressiona em Milhazes não é o colorido, mas a arquitetura do caos construída com método quase científico. Seus quadros são fruto da técnica minuciosa do “monotransfer”, no qual ela pinta sobre plástico, remove camadas, sobrepõe fragmentos e reinventa a superfície como quem organiza uma festa no meio da biblioteca. Não por acaso, sua formação na Escola de Artes Visuais do Parque Lage a aproximou de um experimentalismo que nunca perdeu a disciplina. Essa tensão — entre a ordem e o delírio — é a chave para entender por que suas obras funcionam dentro e fora do Brasil. Há cálculo, mas também há vertigem; há controle, mas também há dança.

E talvez seja essa dança que explique por que Milhazes se tornou sinônimo de uma arte brasileira que não teme ser global sem perder sotaque. Suas referências circulam de Matisse a chita de feira, de Op Art a carro alegórico, de mandalas orientais a vitrais de igreja barroca. Ela nunca analisou o país a partir do trauma, mas do excesso — e isso, convenhamos, é tão brasileiro quanto o trauma em si. O que está em jogo em suas telas não é uma identidade fixa, mas um Brasil em rotação permanente. Um Brasil que ainda sabe improvisar. Não surpreende, portanto, que parte de sua vida tenha se dividido entre o Rio e longas temporadas no exterior, sempre com a leveza de quem carrega um estúdio dentro da própria cabeça.

Ordem, desordem e o luxo de ser exuberante

O estranhamento que Milhazes provoca também tem raiz na forma como seu trabalho se encaixa no mercado global de arte. Ela circula com naturalidade em galerias de Miami, Nova York e Londres. Seus quadros atingem valores altíssimos — o que, no Brasil, costuma gerar suspeitas. “Se é caro, deve ser bobagem para gringo ver”, dizem alguns com aquela ironia defensiva que o país domina com maestria. Mas reduzir sua obra a um fenômeno de mercado é não entender o que está diante dos olhos. Milhazes se tornou valiosa justamente porque faz algo que pouquíssimos artistas latino-americanos conseguiram: criar uma linguagem imediatamente reconhecível e, ainda assim, sofisticada, capaz de transcender modismos ou rótulos identitários.

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O mercado não inventou Milhazes; apenas percebeu que sua aliança entre rigor geométrico e delírio tropical era mais rica do que parecia. Num mundo de galerias higienizadas e tons neutros, suas pinturas são quase insolentes — uma festa invadindo um museu que insiste em sussurrar. Não é pouca coisa. Aliás, seu sucesso diz tanto sobre a artista quanto sobre o cansaço global diante da estética cinza contemporânea. Em um tempo em que a arte teme ser interpretada como “demais”, Milhazes assume esse risco. E vence.

Isso não significa que sua obra seja imune a questionamentos. Há quem veja repetição, quem enxergue fórmula. Mas a repetição, no caso dela, é mais liturgia do que preguiça. As formas retornam porque fazem parte de um vocabulário próprio, de um universo que precisa ser visitado várias vezes para ser decifrado. A arte de Milhazes não se esgota no primeiro impacto; ela se multiplica. Suas telas não querem ser lidas — querem ser revisitadas.

Crescida num ambiente artístico, Milhazes sempre trafegou entre linguagens (Foto: Wiki)
Crescida num ambiente artístico, Milhazes sempre trafegou entre linguagens (Foto: Wiki)

No fim, Beatriz Milhazes é singular porque não tenta explicar o Brasil: ela o coreografa. Talvez seja isso que a torne maior do que o rótulo de “maior artista plástica do Brasil hoje”. Sua verdadeira ambição é outra: mostrar que, mesmo quando tudo parece desabar, ainda existe beleza no excesso, ordem na bagunça e rigor na alegria. Milhazes pinta o Brasil que insiste em sobreviver — e, por isso mesmo, segue desafiando o mundo.


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