A incrível criação da batata chips
Em tempos de industrialização alimentícia e fast food gourmetizado, poucas pessoas param para pensar na origem de certos alimentos que hoje fazem parte do cotidiano global — e, mais especificamente, do consumo compulsivo diante de uma tela qualquer. A batata chips, por exemplo, é um desses produtos cuja presença nos mercados do mundo todo é tão natural quanto um refrigerante gelado ao lado. No entanto, o que poucos sabem é que sua criação está ligada a um gesto de impaciência e uma pitada de provocação, além de um personagem histórico que, até hoje, é injustamente ofuscado: um cozinheiro afro-americano chamado George Crum.
A história remonta a 1853, em Saratoga Springs, Nova York, onde Crum trabalhava como chef em um resort frequentado por aristocratas e endinheirados viajantes. Numa noite aparentemente comum, um cliente – que muitos atribuem ser o magnata Cornelius Vanderbilt, embora isso nunca tenha sido confirmado – reclamou que suas batatas estavam muito grossas e pouco crocantes. Crum, talvez num misto de frustração e ironia, cortou as batatas o mais fino possível, fritou-as até ficarem duras e as temperou com sal. A intenção era, dizem alguns relatos, devolver o prato ao cliente como um “tapa de luva culinário”. Para sua surpresa, o homem adorou.
“Num contexto atual em que se discute tanto a representatividade e a memória de personagens esquecidos da história, a figura de George Crum merece mais do que uma nota de rodapé.”
A receita inusitada logo se espalhou e virou o que se chamava na época de Saratoga Chips, uma iguaria exclusiva de restaurantes refinados. Mais tarde, Crum chegou a abrir seu próprio restaurante, onde servia as batatas como um dos carros-chefe, mas sem jamais patentear sua invenção. Isso seria feito décadas depois, por empresários brancos que industrializaram o produto e apagaram a origem negra da receita.
A história de George Crum não é apenas saborosa — é também um retrato simbólico do apagamento de contribuições negras na construção de elementos fundamentais da cultura popular. O caso da batata chips pode parecer banal, mas é emblemático: um homem negro, em pleno século XIX, cria um produto que se tornaria um ícone global e, no entanto, é raramente creditado por isso.
Da genialidade à invisibilidade: a apropriação no prato
Em vez de ver seu nome nas embalagens douradas e cromadas que povoam supermercados ao redor do mundo, Crum virou nota de rodapé. Nos anos seguintes à sua invenção, a batata chips foi sendo industrializada por empresas como a Lay’s (fundada em 1932 por Herman Lay), que levou o produto para todos os cantos dos Estados Unidos e, mais tarde, do planeta. Com o crescimento da indústria alimentícia e o avanço das tecnologias de preservação, o produto foi se tornando cada vez mais barato e acessível, mas sua origem, como tantas outras, ficou perdida no tempo – ou escondida por conveniência.
Hoje, há uma certa recuperação histórica tardia. Algumas publicações nos Estados Unidos e movimentos de valorização da cultura afro-americana passaram a destacar a figura de Crum como pioneiro. Livros escolares começam a incluí-lo em passagens sobre invenções americanas, e iniciativas culturais em Saratoga Springs tratam de preservar sua memória. Ainda assim, para o consumidor médio, a imagem mais comum associada à batata chips é a de mascotes caricatos e campanhas publicitárias barulhentas, não, a de um homem negro de avental branco em uma cozinha do século XIX.
Além disso, a trajetória das batatas chips levanta questões mais amplas sobre o valor da criatividade culinária como forma de invenção. Diferente da ciência ou da tecnologia, a gastronomia não costuma conceder prêmios Nobel ou ter seu panteão de inventores claramente reconhecido. É um tipo de genialidade cotidiana e sensorial que, quando vindo das classes subalternas, parece ainda mais invisibilizada. Crum, ao cortar uma batata em lâminas finíssimas e jogá-las no óleo quente, estava improvisando. Mas também estava inovando — mesmo sem saber.
Num contexto atual em que se discute tanto a representatividade e a memória de personagens esquecidos da história, a figura de George Crum merece mais do que uma nota de rodapé. Sua criação é hoje um dos snacks mais consumidos no planeta. Em 2024, a indústria global de batatas chips movimentou mais de 40 bilhões de dólares, segundo dados da Euromonitor. Nenhuma dessas cifras, é claro, chegou ao criador — falecido em 1914, antes que o mundo conhecesse o verdadeiro potencial de sua ideia.

Mais do que um alimento crocante, a batata chips é símbolo de um talento que não foi reconhecido à altura. E, como tantos outros, George Crum representa uma parte importante da história americana e global que foi sendo esmagada sob o peso da apropriação comercial e do racismo estrutural. Hoje, ao abrir um pacote e saborear uma batata estalando na boca, talvez valha a pena lembrar de quem, de fato, teve a ideia genial primeiro — mesmo que tenha sido, como tantas boas criações, por acidente.
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