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Quem tem medo de Jürgen Habermas?

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Jürgen Habermas está acostumado a ser uma figura que provoca mais reverência do que medo. No entanto, em tempos em que a filosofia é muitas vezes substituída por slogans fáceis e opiniões apressadas nas redes sociais, a mera menção ao seu nome pode gerar inquietação. Não por alguma ameaça real, mas pelo desconforto que provoca naqueles que preferem respostas prontas e simples a perguntas complexas e desconcertantes.

A trajetória de Habermas é uma espécie de obstáculo para o anti-intelectualismo moderno. Nascido em Düsseldorf, em 1929, ele cresceu sob a sombra sombria do nazismo, o que influenciou profundamente seu compromisso ético com a democracia e o esclarecimento. Ao longo de mais de sete décadas de produção intelectual, Habermas moldou não só a filosofia alemã, mas o próprio modo como entendemos a relação entre sociedade, comunicação e poder. Não por acaso, foi professor de algumas das figuras mais poderosas e contraditórias de nosso tempo, como Alex Karp, o CEO da Palantir Technologies, uma das empresas mais associadas à vigilância e à geopolítica digital contemporânea.

“Habermas soa como um fantasma educado lembrando que democracia não é histeria coletiva nem guerra cultural, mas um processo difícil, contínuo e, sim, profundamente racional.”

É exatamente aí que a figura de Habermas se torna desconfortável. Como um defensor intransigente da racionalidade comunicativa e da esfera pública democrática pode ter sido mestre de um dos protagonistas do capitalismo digital e da indústria da vigilância? Essa contradição aparente é um convite à reflexão mais profunda sobre os limites e as possibilidades da filosofia na formação de líderes e intelectuais no século XXI.

Habermas não foi, nem nunca quis ser, um filósofo “fácil”. Suas obras principais, como Teoria do Agir Comunicativo (1981) e Mudança Estrutural da Esfera Pública (1962), exigem paciência, dedicação e uma disposição genuína para o esforço intelectual. Seu projeto sempre esteve vinculado a um ideal esclarecido: o de que as sociedades só podem ser verdadeiramente livres quando as decisões políticas e éticas forem tomadas a partir de um debate racional e inclusivo, em que todos possam participar em condições de igualdade.

A razão pública e o poder privado

Nesse sentido, a presença de figuras como Alex Karp em sua sala de aula é, no mínimo, simbólica. Karp, doutor em filosofia e ao mesmo tempo empresário de um setor profundamente criticado por práticas opacas e alianças controversas com o Estado e o setor militar, representa o dilema clássico entre teoria e prática. Um filósofo pode formar um empresário ético? Ou a filosofia é apenas um verniz sobre as estruturas reais de poder econômico e militar?

Essa tensão, no entanto, não pode ser atribuída a Habermas como uma falha pessoal ou doutrinária. Pelo contrário: seu trabalho sempre apontou justamente para a necessidade de submeter o poder — qualquer poder — ao crivo da razão pública. A esfera pública, para Habermas, é o espaço onde o privado deve se curvar ao interesse coletivo, onde argumentos valem mais que status ou dinheiro. O problema é que, no mundo real, esse ideal é frequentemente sabotado por interesses econômicos, pela manipulação informacional e pela corrosão das instituições democráticas.

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Hoje, a filosofia de Habermas é mais necessária do que nunca, exatamente porque vivemos uma era de descrédito das instituições e de relativização da verdade. Redes sociais transformaram a comunicação pública em trincheiras ideológicas e algoritmos substituíram o debate honesto por bolhas de confirmação. Habermas soa como um fantasma educado lembrando que democracia não é histeria coletiva nem guerra cultural, mas um processo difícil, contínuo e, sim, profundamente racional.

Se há algum medo em relação a Habermas, ele não vem de sua figura serena ou de sua escrita acadêmica. O medo é do que ele exige: tempo, esforço, diálogo e autocrítica. Numa cultura viciada em respostas rápidas e certezas fáceis, nada assusta mais do que a exigência de pensar com profundidade e responsabilidade.

Habermas não foi, nem nunca quis ser, um filósofo “fácil” (Foto: Guia do Estudante)
Habermas não foi, nem nunca quis ser, um filósofo “fácil” (Foto: Guia do Estudante)

Habermas pode não ser um revolucionário pop nem um guru digital, mas continua sendo uma das consciências mais lúcidas do Ocidente. Seus alunos podem trilhar caminhos ambíguos, mas a sua obra permanece como um lembrete incômodo — e, por isso mesmo, necessário — de que a democracia começa na linguagem, e a linguagem só é democrática quando está aberta ao outro.

Talvez seja por isso que tantos têm medo dele.


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