A invenção do sabonete por outro ângulo
Quando pensamos no sabonete, raramente refletimos sobre sua origem. Ele está ali, silencioso, espumando entre nossos dedos, garantindo uma sensação de limpeza e um cheiro que nos remete à infância, à saúde, à civilização. Mas a história da invenção do sabonete — ou, melhor dizendo, sua transformação em um símbolo cultural — é bem mais complexa do que se costuma contar. E, embora seja comum associá-lo a avanços da química ou à tradição ancestral da higiene, é preciso dizer: boa parte da “invenção” do sabonete, tal como o conhecemos hoje, foi uma operação de branding.
Não há um inventor do sabonete. Ele já era usado milênios antes da era moderna. Há registros da Mesopotâmia e do Egito Antigo de substâncias feitas de gorduras fervidas com cinzas — a base do que seria o sabão. Os romanos também conheciam a prática, embora nem sempre com fins higiênicos. A Idade Média viu o recuo desses hábitos, e o Renascimento os retomou timidamente. Mas foi só no século XIX, com o avanço da industrialização e da publicidade, que o sabonete assumiu o status de objeto doméstico essencial — limpo, perfumado, moral.
E aqui entra o nome de Harley Procter, que, ao lado de seu primo James Gamble, foi responsável por uma jogada decisiva na consolidação do sabonete como um produto de massa.
Em 1879, Harley Procter nomeou um novo sabonete da empresa Procter & Gamble de Ivory — inspirado em uma passagem bíblica (“All thy garments smell of myrrh and aloes and cassia, out of the ivory palaces”). Mas o batismo não foi um gesto puramente estético ou devocional. Procter entendeu, como poucos à época, que vender sabonetes não era apenas vender um produto de limpeza. Era vender virtude, civilidade, progresso.
Procter usou a Bíblia como âncora moral e a ciência como escudo. Anúncios do Ivory diziam que ele era “99 e 44/100% puro” — um número absurdamente preciso para uma época em que testes laboratoriais eram escassos. Mas funcionou. A ideia de pureza se colou ao sabonete de uma forma invejável, e Ivory virou um ícone. Ao mesmo tempo, Procter comprava espaços em jornais e revistas, associando o sabonete à ideia de saúde pública, à luta contra a sujeira, e — em um subtexto inescapável — à superioridade da cultura branca, protestante, americana.
A espuma moral de Harley Procter
O sabonete não era apenas um produto: era um vetor de civilização. Ele era apresentado como algo que afastava a imundície, o pecado e, muitas vezes, o “outro”. Anúncios da época sugeriam, de modo implícito ou explícito, que povos que não usavam sabonete eram atrasados. Havia um componente de colonialismo cultural envolvido na sua difusão.
Outros nomes também tiveram papel central nesse movimento. William Hesketh Lever, fundador da Lever Brothers (que mais tarde se fundiria à holandesa Margarine Unie para formar a Unilever), criou o Sunlight Soap e foi um pioneiro no uso do marketing para transformar o sabonete em uma marca global. Lever construiu até uma cidade modelo, Port Sunlight, para seus operários — reforçando a ideia de que sabonete e moral andavam juntos.
A grande “invenção” desses empresários não foi o sabonete em si, mas o conceito do sabonete moderno como o conhecemos: limpo, inodoro ou perfumado com leveza, quase medicinal, embalado em caixas com palavras suaves, vendendo mais do que espuma — vendendo uma narrativa.

Hoje, quase 150 anos depois, continuamos a consumir esse imaginário. As campanhas atuais ainda prometem pureza, beleza, autoestima. Apenas trocaram a linguagem da Bíblia pela dos algoritmos. O sabonete, agora vegano, sustentável, antialérgico ou formulado por dermatologistas, continua sendo um produto moralizado — só que sob o verniz do marketing contemporâneo.
E, ironicamente, muito da espuma atual ainda se sustenta nas bases estabelecidas por figuras como Procter e Lever. Claro que devemos reconhecer o papel dessas empresas na massificação da higiene básica — algo crucial na história da saúde pública. Mas é preciso, também, criticar o modo como esses mesmos nomes construíram suas fortunas em cima de discursos moralistas, racializados e, muitas vezes, excludentes.
Revisitar a história do sabonete por outro ângulo é isso: perceber que nem toda invenção se dá no laboratório. Às vezes, ela nasce na agência de publicidade. E que, atrás da espuma, pode haver uma engrenagem de ideologia, religião e controle social que ainda estamos longe de enxaguar completamente.
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