Bandido da Luz Vermelha: “estrela do crime”
A figura do “Bandido da Luz Vermelha” paira no imaginário brasileiro como um símbolo da criminalidade midiática, do fascínio mórbido e da espetacularização da violência urbana. João Acácio Pereira da Costa, seu nome verdadeiro, não foi o primeiro criminoso a virar celebridade nacional, mas foi, talvez, o primeiro a ser tratado como um personagem com enredo próprio. Agindo entre 1960 e 1967, em São Paulo, João Acácio ganhou notoriedade por invadir mansões da elite paulistana, usando luvas, máscara e uma lanterna de luz vermelha — objeto que lhe deu o apelido popular e um lugar definitivo na cultura pop nacional.
Como ele conduzia seus crimes — com certa teatralidade, entrando e saindo de residências luxuosas enquanto zombava da polícia e das vítimas — despertou o interesse tanto da imprensa sensacionalista quanto do público. Era uma era em que a televisão ainda dava seus primeiros passos no Brasil, mas o rádio e os jornais rapidamente transformaram aquele ladrão habilidoso em figura lendária. Ainda mais chocante era o contraste: ao mesmo tempo, em que aterrorizava os bairros ricos, João Acácio mostrava uma sofisticação verbal incomum para um criminoso comum. Era analfabeto funcional, mas usava frases de efeito e tentava justificar suas ações como uma forma de “justiça” contra os ricos.
“Morreu sem glamour, como tantos outros homens que cruzaram a linha entre a marginalidade e o esquecimento.”
Essa romantização, no entanto, não pode obscurecer os fatos. O Bandido da Luz Vermelha cometeu dezenas de roubos, estupros e homicídios. Sua atuação não foi apenas a de um ladrão excêntrico: houve vítimas concretas, traumas permanentes e mortes. A construção da sua imagem, portanto, precisa ser lida com o devido senso crítico. A sociedade brasileira da década de 1960, marcada por desigualdades gritantes e por um sistema policial arcaico e violento, viu naquele homem um tipo de anti-herói — uma distorção que diz mais sobre o Brasil do que sobre o próprio João Acácio.
O caso do Bandido da Luz Vermelha encontrou eco também nas artes. Em 1968, o dramaturgo e cineasta Rogério Sganzerla dirigiu o longa-metragem O Bandido da Luz Vermelha, um marco do cinema marginal brasileiro. Com uma estética experimental, uma narrativa fragmentada e forte influência da nouvelle vague francesa e do tropicalismo, o filme ajudou a cristalizar o mito — mas sem glorificar o criminoso. Sganzerla usou a figura de João Acácio como alegoria do caos urbano, da decadência moral e da alienação provocada pelos meios de comunicação de massa.
Cinema, dramaturgia e o mito reinventado
Rogério Sganzerla, nascido em 1946 em Joaçaba (SC), foi um dos principais nomes do movimento que se rebelou contra o cinema tradicional e a ditadura militar. Era crítico, provocador, e profundamente interessado em desmontar as estruturas convencionais da narrativa cinematográfica. Em O Bandido da Luz Vermelha, ele cria um filme que é, ao mesmo tempo, denúncia social e sátira da mídia, transformando a história de João Acácio numa espécie de fábula pós-moderna sobre um país em colapso moral. Morreu jovem, aos 57 anos, em 2004, mas deixou uma obra densa e provocadora, que continua sendo estudada e celebrada.
O filme, muito mais do que um retrato fiel da vida do criminoso, é uma crítica profunda à sociedade brasileira: seus delírios de modernidade, seu autoritarismo, sua desigualdade. A luz vermelha que invade a tela e a vida das personagens é, antes de tudo, um alerta sobre a barbárie institucionalizada. Por isso, o trabalho de Sganzerla não deve ser confundido com apologia ao crime: trata-se de arte crítica, de desconstrução narrativa e política.

João Acácio foi preso em 1967 e permaneceu encarcerado por mais de 30 anos. Quando saiu da prisão, em 1997, já não era o mesmo. Sem identidade clara, com sinais de distúrbios mentais e abandonado pela sociedade que antes o transformara em personagem de ficção, acabou assassinado em Santa Catarina no início de 1998, pouco tempo após sua liberdade. Morreu sem glamour, como tantos outros homens que cruzaram a linha entre a marginalidade e o esquecimento.
O Brasil continua debatendo sua relação com o crime, a violência e a espetacularização da miséria urbana. O caso do Bandido da Luz Vermelha permanece como um lembrete incômodo de como a cultura pode, em determinados contextos, confundir realidade e ficção — e de como a sociedade, ao transformar criminosos em mitos, talvez revele mais sobre suas próprias contradições do que sobre os bandidos que julga ou celebra.
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