Como foi o declínio da RKO Pictures?
A RKO Pictures costuma aparecer nos livros de cinema como aquele estúdio que brilhou mais do que viveu. Um cometa fulgurante que riscou o firmamento de Hollywood, deixou para trás astros, obras-primas e uma estética própria, antes de ser tragado pela gravidade da incompetência, da paranoia política e de uma sucessão de decisões empresariais que fariam qualquer consultor moderno pedir demissão antes mesmo de assinar o contrato. Fundada no fim dos anos 1920, quando todo mundo parecia acreditar que a combinação “cinema + rádio” seria a alquimia definitiva do capitalismo cultural, a RKO nasceu com pedigree, capital e ambição. Não era para ser pequena. E, por alguns anos, de fato não foi.
Durante as décadas de 1930 e 1940, a RKO lançou filmes que moldaram o imaginário cinematográfico ocidental: “King Kong” subiu no Empire State Building antes de os americanos sequer entenderem o que era blockbuster; “Astaire e Rogers” transformaram dança em narrativa; e “Citizen Kane” mostrou que o cinema pode ser arte antes de ser negócio — e que, quando é arte antes do negócio, normalmente dá prejuízo. A produtora foi o berço de Orson Welles, de efeitos especiais revolucionários, de moral ambígua e de audácias formais que ainda inspiram cineastas contemporâneos. Se o cinema clássico de Hollywood tem um Olimpo, a RKO ergueu templos inteiros lá em cima.
“O declínio da RKO é, portanto, uma parábola sobre criatividade e capitalismo — e, principalmente, sobre como o cinema americano se consolidou não apenas por talento, mas por método industrial. Enquanto MGM e Warner estabeleceram burocracias fortes o suficiente para suportar crises, a RKO funcionou como um ateliê de artistas protegidos por milionários volúveis.”
Porém, o que a história devolve com generosidade artística, cobra com juros corporativos. Enquanto seus concorrentes — Paramount, MGM, Warner — criavam uma lógica de escala, produção industrializada e integração vertical, a RKO era uma empresa em eterno conflito interno. Brigas de acionistas, executivos que se revezavam como técnicos ruins de time grande, e uma incapacidade crônica de equilibrar ousadia criativa com contabilidade básica. A RKO produzia obras-primas, mas tratava o caixa como se fosse roteiro de fantasia. E, no capitalismo do século XX, quem não sabe contar vira personagem secundário.
A ascensão de Howard Hughes à direção do estúdio nos anos 1940 deveria ter sido o momento de virada. Um bilionário excêntrico, gênio da aviação, playboy e megalomaníaco assumindo Hollywood — parecia roteiro vendido antes de ser filmado. O problema é que Hughes confundiu estúdio com brinquedo. Demitiu, contratou, reescreveu, recortou, censurou e paralisou filmagens por capricho, paranoia ou simples falta de atenção. Enquanto outros apostavam no pós-guerra com expansão, a RKO virou refém da obsessão de um homem.
Um império desmontado em câmera lenta
O declínio formal começou quando o modelo de negócios dos grandes estúdios foi questionado judicialmente, levando à ruptura da verticalização e ao fim do monopólio sobre salas de cinema. MGM e Warner sobreviveram porque tinham reservas, estrutura e disciplina militar. A RKO, com sua alma boêmia e caixa anêmico, entrou em colapso. Hughes tentou vender, recomprou, vendeu de novo, e nesse processo destruiu o que ainda funcionava: departamentos, equipes e confiança. É como se alguém herdasse um Rolls-Royce e decidisse desmontar o motor para ver se algo “melhora”.
Além do caos administrativo, a RKO enfrentou a caça ao comunismo, que atingiu diretamente seu corpo criativo. Roteiristas e diretores blacklistados, projetos engavetados, clima paranoico. O estúdio que nasceu para criar fantasias acabou sequestrado por pesadelos ideológicos. Enquanto isso, a televisão surgia como concorrente voraz, exigindo adaptação rápida — algo para o qual a RKO tinha a agilidade organizacional de um elefante bêbado.
Se o começo foi épico, o final foi melancólico. Nos anos 1950, a RKO vendia catálogo e ativos como alguém que leiloa móveis após divórcio. Em 1957, encerrou a produção. Sobreviveu depois como marca, arrastando o nome como relíquia — algo respeitável, mas incapaz de influenciar. Hoje, a RKO existe, mas como fantasma elegante: sem musculatura, sem catálogo inédito, sem relevância industrial. O nome persiste porque Hollywood gosta de mitologia, e poucas empresas ofereceram mitos tão cinematográficos quanto ela.
O declínio da RKO é, portanto, uma parábola sobre criatividade e capitalismo — e, principalmente, sobre como o cinema americano se consolidou não apenas por talento, mas por método industrial. Enquanto MGM e Warner estabeleceram burocracias fortes o suficiente para suportar crises, a RKO funcionou como um ateliê de artistas protegidos por milionários volúveis. Não surpreende que tenha gerado obras-primas; surpreende que tenha durado tanto.

O que resta? Um catálogo icônico, críticas reverenciais, uma marca que circula no imaginário cinéfilo e uma lição incômoda: o cinema é arte até o dia em que o balanço fecha. Depois disso, é museu. E a RKO, com sua trajetória gloriosa e trágica, garantiu o bilhete permanente na ala nobre — não como vencedora do jogo, mas como lembrança de que, às vezes, quem muda a história não é quem chega ao fim, mas quem cai com estilo.
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