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Democracia cercada por silêncios e conluios

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Há noites em que nem o silêncio absoluto basta. Há noites em que o Brasil pulsa tão inquieto, tão cheio de ruídos subterrâneos, que só uma convocação – dessas que atravessam épocas, regimes e sepulturas – é capaz de ordenar o caos. A política, hoje, se parece menos com debate público e mais com um cemitério mal administrado: túmulos revirados, fantasmas falando pelos cantos, vivos fingindo que não ouvem. E eu, na penumbra branca da mesa que transformei em altar, percebo que há momentos em que apenas os mortos realmente compreendem o país que deixaram para trás. Foi assim que decidi chamar um deles. Um que não se esconde. Um que não floresce na covardia. Um que, se vivo estivesse, talvez virasse pó de tanta indignação: Ulysses Guimarães, o homem que ergueu a Constituição como quem ergue um escudo contra a barbárie, o pai da modernidade institucional brasileira, o deputado que fazia discursos como quem acendia tochas em plena escuridão. Do outro lado, Ulysses observa o presente com aquele misto de cólera e lucidez que sempre o definiu: vê a mudança nas penas do 8 de janeiro como um sussurro cúmplice; vê Eduardo Bolsonaro conspirando no exterior como traição institucional; vê o centrão governando como dinastia informal; vê trinta anos de escândalos como reincidência de uma mesma doença mal tratada. E, como todo morto que amou a República mais do que muitos vivos, Ulysses retorna não por saudade, mas por dever. Para advertir. Para resmungar. Para lembrar que democracia não é relíquia: é obra diária — e uma obra que, sem vigilância, vira ruína. Agora, deixo que ele fale. Não como político histórico. Não como mito. Mas como consciência inquieta, como fantasma que não perdoa omissão, como testemunha eterna daquilo que o Brasil insiste em fingir que não vê.

Frederic Chaz – Dr. Ulysses, como o senhor enxerga a decisão da Câmara de alterar a dosimetria das penas do 8 de janeiro, reduzindo punições que já haviam sido definidas pelo Supremo?

Ulysses Guimarães – Vejo como um sintoma. Quando o Parlamento legisla olhando pelo retrovisor para salvar os seus, a Constituição fica órfã. Quem invadiu, depredou e quis rasgar o Estado Democrático de Direito tem de ser punido com rigor. Se o Congresso se move para aliviar penas por conveniência política, ele raspa o chão moral da República. Isso não é clemência — é cumplicidade tardia.

Chaz – Muitos dizem que essa mudança favorece Jair Bolsonaro e seus aliados diretos. O senhor concorda?

Ulysses – Evidente. O Brasil tem dificuldade crônica de separar interesse público de conveniência eleitoral. Quando medo e cálculo se misturam, surgem leis sob medida. A anistia, o abrandamento e o esquecimento são técnicas antigas de sobrevivência política. Não é novidade — mas continua sendo vergonhoso.

Chaz – Como o senhor avalia o fato de Eduardo Bolsonaro, deputado federal, ter ido aos EUA participar de encontros que flertam com ataques à democracia brasileira?

Ulysses – O nome disso é deslealdade institucional. Um parlamentar jurou defender a Constituição. Se viaja para tramar contra o seu próprio país, está moralmente despedido do mandato. No meu tempo, conspirador ficava isolado. Hoje, ganha manchete, selfie e convite para jantar. É a banalização do golpismo.

Chaz – Há quem diga que essas articulações internacionais fazem parte de uma “rede global de extremismo”. Isso preocupa o senhor?

Ulysses – O extremismo sempre foi cosmopolita. A diferença é que agora ele viaja em primeira classe. Não subestime reuniões paralelas, jantares discretos e discursos inflamados para plateias estrangeiras. Golpes não precisam mais de tanques — basta wi-fi e impunidade política. O Brasil precisa aprender que democracia sem vigilância é como porta aberta em tempestade.

Chaz – O centrão continua, décadas depois, sendo o maior poder informal do país. O que isso revela sobre a nossa democracia?

Ulysses – Revela que trocamos de Constituição, mas mantivemos a velha liturgia do balcão. O centrão não é ideologia — é método. Ele governa porque o Executivo é fraco e o eleitor é paciente. Enquanto existir orçamento secreto, cargos e chantagem orçamentária, o centrão será o síndico permanente da República. É o poder que não perde eleição.

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Chaz – O senhor, como presidente da Constituinte, acreditava que esse tipo de prática política diminuiria ao longo do tempo?

Ulysses – Acreditava e errei. Imaginávamos que a luz da Constituição iluminaria os porões. Mas esquecemos que os porões têm vocação para ressurgir. A democracia é planta delicada: sem poda, vira matagal; sem cuidado, apodrece. E tem gente que vive do matagal.

Chaz – Os escândalos das últimas três décadas — anões do orçamento, sanguessugas, mensalão, lava-jato, orçamento secreto — apontam para uma corrupção endêmica?

Ulysses – Não apenas endêmica: cultural. A corrupção brasileira é como febre — cai, volta, some, reaparece. Ela se reinventa. Quando você combate a mala de dinheiro, surge a nota fria. Quando proíbe a nota fria, aparece o contrato fictício. A ética é lenta. A esperteza é veloz. A corrupção aprende mais rápido do que os órgãos de controle.

Chaz – O senhor acredita que a mudança da dosimetria das penas pode ser o início de um processo de enfraquecimento institucional mais amplo?

Ulysses – Cada vez que o Legislativo revê punições para agradar facções, envia um recado: “Aqui, os poderosos não caem”. Isso incentiva novos ataques. Não há democracia forte com memória fraca. Perdão sem arrependimento é convite para repetir a violência.

Chaz – Como o senhor definiria o atual momento da República?

Ulysses – Um tempo de fadiga cívica. Os brasileiros estão cansados — e o cansaço é perigoso, porque é nele que floresce o oportunismo. Quando o país se acostuma com o absurdo, o absurdo ganha carteira de identidade. Está na hora de espantar o tédio político que anestesia as pessoas enquanto o edifício desaba.

Chaz – Por fim, Dr. Ulysses: qual conselho o senhor daria aos que hoje decidem o destino da nossa democracia?

Ulysses – Leiam a Constituição como quem lê um testamento — porque ela é. É o testamento dos que morreram acreditando em um país decente. Respeitem-na. Protejam-na. E lembrem-se: golpes não começam com tanques; começam com desculpas. Se não houver coragem, o Brasil continuará sendo um país que ensaia grandeza, mas entrega remendos. A democracia é teimosa — mas não é imortal.


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