Holodomor: fome e terror na Ucrânia
Em meio às muitas tragédias do século XX, poucas rivalizam em crueldade e impacto histórico com o Holodomor — a fome artificialmente provocada que devastou a Ucrânia entre 1932 e 1933, durante o governo de Josef Stalin. A palavra “Holodomor” vem do ucraniano “holod” (fome) e “moryty” (exterminar), e é justamente isso o que aconteceu: a fome como instrumento deliberado de repressão política. O episódio, ainda hoje, é tema de debates diplomáticos, disputas ideológicas e revisões historiográficas. Em 2025, o reconhecimento do Holodomor como genocídio é aceito por mais de 30 países, embora a Rússia, herdeira oficial da União Soviética, continue a negar essa interpretação, alegando que a escassez de alimentos afetou outras regiões soviéticas, e que as mortes foram resultado de uma combinação de falhas administrativas e mal colheitas — não de um plano deliberado.
Mas os fatos falam mais alto. Estima-se que entre 3,5 e 7 milhões de ucranianos tenham morrido de fome em menos de dois anos. Aldeias inteiras desapareceram. Famílias foram destruídas. Casos de canibalismo foram registrados em diversas áreas rurais. O regime soviético, em plena implementação da coletivização forçada da agricultura, obrigou os camponeses ucranianos — em sua maioria kulaks, agricultores relativamente prósperos — a entregar suas colheitas ao Estado. Ao mesmo tempo, qualquer resistência à entrega total dos grãos era considerada sabotagem, punida com prisão, deportação ou morte. Como resultado, os grãos foram exportados para manter a imagem de uma URSS produtiva, enquanto o povo morria lentamente de inanição.
“O Holodomor permanece como um capítulo sombrio da história do século XX. Ele revela o quanto os regimes totalitários são capazes de sacrificar vidas humanas em nome de ideologias e objetivos políticos.”
O Holodomor não foi apenas um desastre humanitário. Foi, sobretudo, um crime político de grandes proporções. O governo soviético impôs cotas irreais de produção agrícola aos camponeses e confiscou até mesmo as sementes necessárias para o próximo plantio. O acesso a alimentos foi proibido em diversas regiões e, em uma política chamada de “passaporte interno”, os moradores das áreas afetadas eram impedidos de fugir para outras cidades em busca de socorro. Tropas foram enviadas para confiscar os últimos mantimentos das casas — mesmo os produtos que não eram parte da safra oficial.
Para piorar, tudo isso foi encoberto por um manto de silêncio e propaganda. Jornalistas ocidentais que visitavam a URSS tinham seus deslocamentos controlados e raramente conseguiam acesso às áreas mais afetadas. Um dos casos mais emblemáticos foi o do correspondente britânico Gareth Jones, que denunciou a fome após uma visita clandestina à Ucrânia. Sua coragem contrastava com a complacência de outros jornalistas, como Walter Duranty, do New York Times, que minimizou os fatos e chegou a negar a existência de fome generalizada, contribuindo para o atraso no reconhecimento internacional da tragédia.
Uma fome silenciosa, escondida do mundo
Na raiz da política soviética estava o desejo de domar o nacionalismo ucraniano, que se fortalecera após a Revolução de 1917 e a breve independência do país entre 1918 e 1921. Stalin via a Ucrânia como uma região inquieta, cujo povo precisava ser disciplinado. A coletivização forçada foi uma forma de quebrar o espírito de autonomia dos camponeses e de destruir a elite rural ucraniana. Ao mesmo tempo, a destruição da cultura, da língua e da identidade ucraniana fazia parte de uma política mais ampla de russificação e de centralização do poder em Moscou.
É neste ponto que se insere a principal controvérsia contemporânea: o Holodomor foi ou não um genocídio? A Convenção da ONU de 1948 define genocídio como atos cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Vários historiadores e juristas afirmam que o Holodomor se enquadra nessa definição, dada a seletividade com que a fome atingiu a Ucrânia, as evidências de intenção deliberada e a confluência de medidas repressivas. Outros, no entanto, preferem classificá-lo como um “crime contra a humanidade” ou um “ato de terror em massa”, sem o componente étnico que caracteriza o genocídio no sentido jurídico estrito.

Independentemente da nomenclatura, o Holodomor permanece como um capítulo sombrio da história do século XX. Ele revela o quanto os regimes totalitários são capazes de sacrificar vidas humanas em nome de ideologias e objetivos políticos. Revela, também, o papel do silêncio — interno e externo — na perpetuação de crimes de Estado. E nos obriga, quase cem anos depois, a continuar refletindo sobre os limites da memória, da justiça e da responsabilidade histórica.
Em tempos de guerras de narrativas, como a que vivemos atualmente, revisitar o Holodomor é também um gesto de resistência à falsificação da história. Que a fome que matou milhões não seja esquecida. Que os que relativizam ainda hoje ou negam esse crime, saibam que a verdade, por mais soterrada que esteja, sempre ressurge. E que a Ucrânia, marcada por tantas tragédias, possa enfim honrar sua memória sem ter que disputá-la com os fantasmas da opressão.
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