Recomeços pós-fim: a mulher que renasce
Há algo profundamente humano — e universal — na ideia de recomeçar. Mas poucas experiências carregam tanto peso, dor, estigma e resistência quanto os recomeços femininos. Quando uma mulher decide virar a página, reescrever sua história ou reconstruir-se do zero, ela frequentemente se depara com algo mais do que os próprios fantasmas: enfrenta também o julgamento alheio, a moral pública e uma cultura que ainda prefere vê-la no papel de quem sustenta, mas não de quem escolhe.
Muito já se conquistou em termos de liberdade e igualdade de gênero, ao menos no papel. Mulheres são líderes de nações, CEOs de multinacionais, cientistas que mudam o mundo. Mas o cotidiano ainda é um território ambíguo. Quando uma mulher termina um casamento, abandona uma carreira estável, decide não ter filhos, muda de cidade ou inicia um novo relacionamento — especialmente se este recomeço contraria expectativas sociais — ainda se ouve a pergunta: “mas por que ela fez isso?”. O “ela” importa. Poucos perguntam o mesmo quando o sujeito da ação é um homem.
A mulher que recomeça é, quase sempre, vista como suspeita. Se decide mudar de rota aos 40, 50 ou 60 anos, talvez seja “imatura”. Se escolhe priorizar a carreira em detrimento da família, é “fria” ou “egoísta”. Se ousa sair de um relacionamento abusivo ou infeliz, “não tentou o suficiente”. A cultura do sacrifício — que ainda ecoa em famílias, filmes, livros e redes sociais — exige que a mulher suporte mais do que viva. É nessa lógica que o recomeço se torna um ato de insubordinação.
A coragem de não agradar
Recomeçar exige, antes de tudo, coragem para decepcionar. Mães, filhos, amigos, parceiros, colegas de trabalho — o entorno raramente acolhe uma transformação sem resistências. Isso porque a mulher que renasce desestabiliza estruturas: ela rompe padrões, questiona vínculos e, muitas vezes, opta por si.
Esse renascimento pode ter mil formas. Pode vir com a assinatura de um divórcio que demorou anos para acontecer. Pode nascer na decisão de mudar de profissão após décadas em um ambiente que só sugava energia. Pode ser pequeno aos olhos de fora — como a volta à sala de aula ou a retomada de um hobby esquecido — mas gigante para quem atravessou anos de silêncio ou submissão. Também pode ser silencioso: o recomeço que acontece no íntimo, quando ela finalmente entende que não precisa ser aceita por todos.
No entanto, nem toda mulher que recomeça é celebrada — e tampouco deseja sê-lo. O mundo atual, embalado pela estética da superação vendida no Instagram, tende a transformar o recomeço feminino em produto motivacional. Vemos vídeos com legendas inspiradoras, filtros e discursos prontos sobre resiliência. E embora essa vitrine traga visibilidade, ela também desumaniza. Nem todo recomeço é bonito. Nem toda mulher renascida quer sorrir para a câmera. Muitas vezes, há lágrimas, arrependimentos, recaídas, dúvidas profundas — e tudo isso também é parte da jornada.

Além disso, é preciso reconhecer que recomeçar não é uma possibilidade igual para todas. No Brasil, a desigualdade de gênero se entrelaça com a desigualdade social e racial. Mulheres negras e periféricas, por exemplo, têm menos acesso a redes de apoio, segurança financeira ou saúde mental. O recomeço, nesse caso, exige mais do que coragem: exige resistência. É como tentar se reerguer enquanto ainda se luta pelo básico — moradia, respeito, comida na mesa.
Ainda assim, o que se vê, em silêncio, é uma legião de mulheres fazendo esse movimento todos os dias. A atendente que troca de emprego para escapar de um ambiente hostil. A professora que volta a estudar. A mãe solo que decide, após anos vivendo pelos filhos, cuidar de si. A aposentada que começa a pintar. A mulher trans que, após anos de negação, passa a viver sua identidade com autenticidade. Esses recomeços, pequenos e imensos, são atos políticos. Porque desafiam a narrativa dominante de que há um único jeito “aceitável” de ser mulher.
É hora de compreender o recomeço não como ruptura, mas como expansão. A mulher que renasce não nega sua história — ela a ressignifica. E esse processo merece respeito, não desconfiança; apoio, não julgamento. O recomeço não é uma anomalia, é parte do fluxo da vida. E quando as mulheres têm o direito — e o espaço — de recomeçar, toda a sociedade avança com elas.
Última atualização da matéria foi há 2 semanas
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Myrna Dias é Secretária de Redação do Panorama Mercantil e assina a seção Atualíssima, dedicada ao universo feminino sob uma ótica contemporânea, crítica e elegante. Com sensibilidade afiada e texto limpo, ela constrói pontes entre comportamento, cultura e protagonismo. Sua escrita conjuga escuta e posicionamento, navegando entre tendências e dilemas reais com firmeza e empatia. Em um portal comprometido com profundidade e discernimento, Atualíssima é o espaço onde o feminino encontra voz, análise e atitude.
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