Será que o lobo-terrível reviveu mesmo?
Em uma mistura de ficção científica e biotecnologia moderna, a startup norte-americana Colossal Biosciences fez o mundo virar os olhos ao anunciar que conseguiu trazer de volta à vida uma das criaturas mais temidas da Era do Gelo: o lobo-terrível (Canis dirus), extinto há mais de 12 mil anos. Rômulo, Remo e Khaleesi, os três filhotes nascidos desse experimento, ganharam não só nomes simbólicos como também a atenção de toda a comunidade científica e do público. Mas a pergunta que permanece no ar – e que divide especialistas – é: será que o lobo-terrível retornou mesmo?
Antes de mais nada, vale compreender quem foi o lobo-terrível. Esse animal, muito popular na cultura pop (vide a série Game of Thrones), realmente existiu. Viveu durante o Pleistoceno nas Américas, e era parente distante do lobo cinzento moderno. Mais pesado, com mandíbulas mais potentes e uma constituição robusta, o Canis dirus era um superpredador. Seus fósseis foram amplamente encontrados em sítios como La Brea, na Califórnia, encravados no piche que ajudou a preservar partes essenciais de sua estrutura – como dentes e crânios, justamente os materiais usados pela Colossal Biosciences.
A startup utilizou o DNA extraído desses fósseis, datados entre 13 mil e 72 mil anos, como base para editar geneticamente lobos cinzentos modernos. Com apenas 20 alterações em 14 genes específicos, conseguiu gerar filhotes com aparência próxima à dos lobos-terríveis: crânio mais largo, estrutura mais musculosa, uivos distintos e porte avantajado. Porém, como alertam diversos cientistas, aparência não é sinônimo de identidade biológica.
Paleoecologistas como Nic Rawlence, da Universidade de Otago, apontam que o DNA fóssil está extremamente fragmentado, tornando difícil qualquer tentativa de recriação fiel. Comparou o material genético antigo a um quebra-cabeça triturado: pode-se tentar remontá-lo, mas a imagem original jamais será completa. O próprio Rawlence classificou os novos filhotes como híbridos e não como “renascidos”.
Entre o mito genético e a realidade científica
Outros especialistas foram ainda mais enfáticos. Jacquelyn Gill, da Universidade do Maine, destacou que carregar fragmentos genéticos de uma espécie extinta não é suficiente para defini-la como “revivida”. “Tenho mais de 14 genes neandertais em mim”, ironizou. “E não me considero uma neandertal.”
Essa discussão esbarra em um conceito central da biologia: o que é, afinal, uma espécie? Para Beth Shapiro, diretora científica da Colossal, o projeto se baseia na definição morfológica – aquela que foca nas características físicas e funcionais de um organismo. Já os críticos preferem a definição genética e ecológica, que considera a ancestralidade, comportamento, ecossistema e funções desempenhadas. Sob essa ótica, os três filhotes são, sim, lobos cinzentos modificados, e não autênticos lobos-terríveis.
Além da questão taxonômica, há implicações éticas e ambientais. O que será feito desses animais? Eles viverão em cativeiro, em uma reserva natural nos Estados Unidos, protegidos, alimentados e estudados. Não têm capacidade de sobreviver sozinhos, nem devem ser soltos. Logo, sua função principal é servir de experimento vivo – um modelo funcional, como Shapiro defende. No entanto, há quem veja nisso mais um espetáculo de biotecnologia para investidores e manchetes, do que uma real contribuição à conservação.

A tentativa da Colossal Biosciences insere-se em um movimento maior, o da chamada “desextinção”. O mesmo grupo já anunciou planos de “trazer de volta” o mamute-lanoso, o pássaro dodô e o tigre-da-Tasmânia. Mas se por um lado esse avanço soa empolgante, ele também pode criar uma perigosa ilusão: a de que não precisamos mais nos preocupar com a extinção, pois, ela se tornaria reversível. Essa é a crítica contundente feita por Rawlence: “Se passarmos a pensar que podemos ressuscitar qualquer espécie, qual será o incentivo para proteger as atuais?”
De fato, por mais espetacular que a ciência se torne, a extinção continua sendo um evento irreversível na prática ecológica. O comportamento, o ambiente, as interações, tudo isso se perde quando uma espécie desaparece. Criar um animal em laboratório que se pareça com um ancestral extinto é diferente de restaurar toda a complexidade de sua existência.
É inegável que a Colossal alcançou um feito técnico impressionante. Mas também é inegável que a fronteira entre ciência e ficção ainda está mais próxima do lado da ficção. O que nasceu foi um lobo cinzento com roupa de lobo-terrível. Um lembrete de que, por mais que dominemos a engenharia genética, não podemos (ainda) reconstruir o passado em sua plenitude.
Será que o lobo-terrível retornou mesmo? A resposta, ao que tudo indica é: não. Mas talvez a pergunta mais urgente a se fazer seja: por que estamos tentando trazê-lo de volta?
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