O Grande Gatsby: dinheiro, sempre o dinheiro
Se há livros que atravessam décadas como um espelho incômodo da sociedade, O Grande Gatsby, de F. Scott Fitzgerald, está no topo dessa lista. Publicado em 1925, no auge do jazz e do brilho das festas intermináveis, o romance não é só um cartão-postal da era dourada americana: é uma crítica feroz ao mito do sonho americano. Ler Gatsby hoje é perceber que o verniz de sofisticação e luxo que envolve a história não passou de um disfarce para um mundo corroído pela ganância, pela superficialidade e por uma nostalgia desesperada de um passado idealizado.
Narrado por Nick Carraway, um jovem aspirante ao sucesso financeiro, o livro apresenta o misterioso Jay Gatsby, figura monumental e enigmática que constrói uma fortuna colossal para recuperar Daisy Buchanan, o amor perdido. As festas opulentas, os trajes cintilantes e o champanhe jorrando como rios de ouro não são, porém, simples cenários: são sintomas. Fitzgerald usa o excesso não para celebrar, mas para denunciar — o luxo se torna uma caricatura do vazio existencial de seus personagens.
“Por fim, a relevância de O Grande Gatsby em 2025 não é apenas literária, mas sociológica. Num mundo em que desigualdades voltam a crescer e onde as elites digitais se tornam tão exclusivas quanto as aristocracias do passado, a obra de Fitzgerald soa como profecia.”
Ao mesmo tempo, a narrativa desvela uma elite que já não acredita no progresso moral. Tom Buchanan, com sua arrogância de herdeiro, e Daisy, com sua fragilidade adornada, funcionam como ícones da indiferença. Eles se protegem por trás do dinheiro como quem ergue uma fortaleza contra a realidade. O retrato que Fitzgerald pinta é cruel e atual: a riqueza não apenas anestesia, mas absolve. O casal destrói vidas — inclusive a de Gatsby — e se retira para sua bolha de privilégio sem olhar para trás.
Gatsby, por sua vez, é um personagem trágico e fascinante porque acredita sinceramente no mito. Ele é o self-made man que construiu um império para conquistar o passado — um paradoxo vivo. Seu erro não é amar demais, mas amar a ilusão. Fitzgerald percebe, com acerto cirúrgico, que a promessa do dinheiro ilimitado não liberta ninguém; ao contrário, acorrenta ao que há de mais superficial na alma humana.
Luxo, desejo e a farsa do sonho americano
O livro é muitas vezes lido como um romance sobre amor e obsessão, mas é mais preciso interpretá-lo como um estudo sobre status e poder. Fitzgerald, que conhecia por dentro a alta sociedade americana, expõe sua anatomia com detalhes quase antropológicos. Cada detalhe — dos jardins impecáveis às roupas cintilantes — é um signo, uma senha para entrar no clube dos poucos e dos sempre ricos. Mas mesmo quando Gatsby consegue juntar o capital necessário, permanece um outsider. Seu dinheiro, embora vasto, tem cheiro de novo-rico. E isso, naquela sociedade rigidamente estratificada, é imperdoável.
Há também a habilidade literária de Fitzgerald, que escreve com um lirismo seco, misturando a melancolia com a sátira. As frases são curtas, insinuantes, deixando no ar uma sensação de que algo está fora do lugar. Em certo sentido, O Grande Gatsby antecipa o desencanto do século XXI, onde a prosperidade material coexiste com crises de identidade e vazio espiritual. É impossível não ler as festas de Gatsby sem pensar nas festas ostentatórias de influenciadores digitais, ou nas mansões de celebridades contemporâneas que parecem ecoar a mesma estética do excesso.
Outro ponto importante é a moralidade seletiva que permeia o livro. Enquanto os personagens mais ricos manipulam, mentem e escapam das consequências, os mais pobres — como Myrtle e George Wilson — pagam o preço final. Essa assimetria não é mero acaso narrativo, mas um dispositivo crítico: Fitzgerald desmonta o mito de que todos têm as mesmas oportunidades e mostra que a estrutura social americana (e, por extensão, a ocidental) funciona como um cassino manipulado, onde alguns já entram com as fichas garantidas.
É curioso que muitos leitores ainda vejam Gatsby como uma história romântica, quando, na verdade, o romance é secundário diante da denúncia social. O amor de Gatsby por Daisy é, em última instância, um amor por um símbolo — ela representa o acesso definitivo a um mundo que sempre o rejeitou. E, ao morrer, Gatsby não apenas perde Daisy; perde o mito que sustentava sua existência.
Por fim, a relevância de O Grande Gatsby em 2025 não é apenas literária, mas sociológica. Num mundo em que desigualdades voltam a crescer e onde as elites digitais se tornam tão exclusivas quanto as aristocracias do passado, a obra de Fitzgerald soa como profecia. Ela nos lembra que a busca obsessiva pelo dinheiro e pelo status continua sendo o motor silencioso das relações humanas, travestido de meritocracia, inovação ou lifestyle.
O Grande Gatsby permanece atual porque fala de nós — de nossas contradições, de nossa ânsia por consumo, de nossa crença ingênua de que tudo pode ser comprado, inclusive o tempo. Fitzgerald constrói uma parábola onde o luxo não é apenas cenário, mas armadilha; e onde a nostalgia do que nunca existiu pode custar vidas inteiras. Talvez por isso, ao virar a última página, a sensação não seja de glamour, mas de ressaca.

Assim, reler Gatsby hoje é mais do que um exercício literário: é uma autópsia do nosso próprio imaginário. O dinheiro, sempre ele, continua funcionando como promessa e castigo. E enquanto houver quem confunda brilho com valor, o mito de Gatsby permanecerá vivo — brilhando falsamente, como uma luz verde ao longe, que nunca se alcança.
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