Casos de Família: um freak show moderno
Há programas de televisão que funcionam como fósseis vivos da cultura midiática — espécies de “Jurassic Park” televisivo em pleno streaming. O Casos de Família, que voltou ao SBT em julho após um hiato de dois anos, é um desses exemplares. Criado em 2004 para ser um espaço de escuta e mediação, tornou-se, ao longo do tempo, um palco para excentricidades públicas. Entre a plateia exaltada, debates caricatos e um ar de dramaturgia improvisada, o programa opera hoje como um teatro do absurdo vespertino, onde a intimidade vira mercadoria.
No início, com Regina Volpato, a proposta tinha uma aura pedagógica. Um ambiente neutro, mediado por psicólogos, que estimulava diálogo e autocontrole — mais um consultório coletivo do que um auditório. Essa “fase zen” do programa tinha um charme próprio, um clima de cuidado e escuta. Mas os números de audiência falaram mais alto. Em 2009, Silvio Santos deu uma guinada estratégica: sai o humanismo, entra o espetáculo. Christina Rocha assumiu o comando, e o Casos virou o que é até hoje: um híbrido de reality show e tribunal público, onde ninguém sai inocente — muito menos o espectador.
“E há uma ironia final: enquanto as classes mais ricas protegem suas intimidades em condomínios e consultórios privados, os mais pobres seguem tendo suas vidas transformadas em entretenimento barato.”
Essa metamorfose não foi apenas estética. Ela refletiu a transformação do consumo televisivo brasileiro. Enquanto a internet devorava atenção com memes, trechos curtos e reality shows improvisados, o Casos aprendeu a jogar o jogo. O que antes era “vamos resolver problemas” virou “vamos criar clipes virais de barraco para o Twitter e o TikTok”. É o freak show contemporâneo, um pouco voyeur, um pouco caricatura, um pouco sociologia barata servida com música de suspense.
E, em seu retorno, o Casos de Família escolheu dobrar a aposta. Em vez de reinventar-se como um talk show sofisticado ou um debate equilibrado, voltou justamente no auge das discussões sobre reality, “exposed” e cultura do cancelamento. Seu revival não é um acidente, mas uma jogada calculada do SBT para ocupar um nicho nostálgico e rentável: a plateia que quer catarse em horário vespertino. O Casos está para o Brasil de 2025 como Jerry Springer esteve para os EUA dos anos 1990 — um espelho torto, mas ainda assim espelho.
No DNA do programa há um contraste gritante: a promessa inicial de cuidado psicológico versus a entrega deliberada ao sensacionalismo. A psicóloga Anahy D’amico, durante 19 anos no ar, funcionava como âncora moral no meio do caos. Mas, com o tempo, o espaço para análise foi encolhendo diante da demanda por conflito explícito. Essa transformação reflete a lógica dos reality shows modernos: mais importante do que resolver conflitos é mantê-los acesos, alimentando engajamento.
Só que o preço desse engajamento não é pago pelos executivos do SBT, mas pelos convidados — quase sempre gente pobre, anônima, em situação vulnerável. A emissora chega a oferecer cachês ridículos, almoço e transporte. Em 2013, um ex-participante expôs no Facebook que recebia cem reais por episódio. Cem reais para abrir a vida, expor vergonha e virar meme. É o circo romano do século XXI, mas sem leões: só humilhação televisionada em troca de mixaria.
Além disso, o histórico de horários e mudanças de formato mostra que o SBT sempre tratou o Casos como um coringa: troca de faixa, muda apresentador, suspende e volta. Essa instabilidade não é apenas operacional – ela se comunica com o público, sugerindo que o programa é mais produto de conveniência do que projeto editorial. Atualmente, por exemplo, ele voltou ocupando a vaga de “A Usurpadora” e depois migrou para as 17h para tapar buracos de grade. É TV como jogo de xadrez: cada peça onde der audiência e merchandising.
Da terapia ao espetáculo — e à exploração
Mesmo com acusações de armação — participantes repetidos em outros programas, histórias reaproveitadas, cachês simbólicos — o Casos de Família nunca perdeu seu apelo popular. Pelo contrário: virou uma espécie de arena catártica, um “lugar seguro” para o público se indignar com problemas alheios. Essa fórmula, ironicamente, deu ao SBT uma sobrevida no vespertino, mesmo em tempos de streaming e microvídeos.
A diferença é que, em vez de artistas profissionais, o Casos usa “atores” improvisados: gente comum. Pessoas que muitas vezes se inscrevem para ganhar um troco e acabam expostas nacionalmente. Há, no fundo, um padrão perverso: o pobre vira personagem exótico para entreter a classe média cansada depois do almoço. Um freak show brasileiro com trilha de auditório.
Outro aspecto revelador é a escolha de apresentadores e testados para o novo formato: de Jojo Todynho a Pablo Marçal. O SBT sabe que precisa de figuras midiáticas capazes de viralizar além da tela. Christina Rocha retorna, assim, como símbolo de estabilidade e caos ao mesmo tempo – alguém já treinada para lidar com plateias exaltadas e convidados performáticos. Sua volta é quase um atestado de que o Casos quer entregar exatamente o que se espera: mais show, menos caso.
Do ponto de vista editorial, pode-se criticar a ética dessa abordagem, mas não seu cálculo. Em um ecossistema saturado, a exposição do íntimo virou mercadoria. O Casos não inventou isso — apenas institucionalizou em formato de programa vespertino. É, nesse sentido, um “serviço público” às avessas: educa o público a consumir espetáculo disfarçado de terapia e a achar normal ver gente pobre esculachada na tela.
No fim das contas, o Casos de Família é um estudo de caso de como a TV aberta negocia relevância e audiência. É freak show, sim, mas freak show com método. O SBT reestreia o programa sabendo que o Brasil de 2025 não é o mesmo de 2004. A plateia hoje está acostumada a barracos em lives, discussões no X (ex-Twitter) e reality shows que misturam sexo, política e empreendedorismo. O programa volta mais como marca vintage do que inovação – mas ainda assim funcional.

E há uma ironia final: enquanto as classes mais ricas protegem suas intimidades em condomínios e consultórios privados, os mais pobres seguem tendo suas vidas transformadas em entretenimento barato. Cem reais e um almoço para ser ridicularizado diante de milhões. É um retrato cru das desigualdades brasileiras transposto para a televisão aberta, sem filtros.
Seja como entretenimento culposo, seja como retrato do zeitgeist, o Casos cumpre sua função: mostra que, em um país de desigualdades profundas, a intimidade alheia continua sendo um espetáculo acessível e barato. E talvez seja exatamente esse seu maior trunfo — ou sua maior vergonha.
Querendo ou não, a volta do Casos de Família nos lembra de algo incômodo: enquanto algumas famílias brigam por likes, outras brigam por espaço na TV. E nós, espectadores, seguimos assistindo, entre risos e críticas, como se tudo isso fosse apenas uma novela da vida real — porque, de certa forma, é.
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