Kids: as quase três décadas da polêmica
Quando “Kids” estreou em 1995, dirigido por Larry Clark e escrito pelo então estreante Harmony Korine, o cinema independente americano foi atingido como por um míssil. Não era apenas um filme sobre adolescentes nova-iorquinos: era uma experiência visceral, desconfortável e deliberadamente provocadora. Em 2025, com quase trinta anos desde sua estreia, “Kids” ainda é um tema controverso, revisitado com olhares que vão da reverência à crítica contundente — e por boas razões.
O longa retrata um único dia na vida de jovens nova-iorquinos em uma espiral de sexo, drogas e violência, com especial foco em Telly, um garoto obcecado por transar com virgens, e Jennie, uma adolescente que descobre estar contaminada com HIV após uma única experiência sexual com ele. O filme não oferece redenção, não julga abertamente seus personagens, nem amortece a queda: ele simplesmente mostra, com câmera inquieta e estética quase documental, um universo que os adultos fingiam não ver.
“Enquanto continua dividindo opiniões, “Kids” segue sendo relevante por seu poder de incomodar. E talvez, em tempos de produções excessivamente filtradas, roteiros moralistas e adolescentes digitalmente higienizados, esse incômodo seja, paradoxalmente, o seu maior valor artístico.”
Essa crueza foi, e ainda é, o ponto central de toda a polêmica. À época, críticos se dividiram. Alguns o chamaram de um retrato cru e necessário da juventude urbana em decadência; outros o acusaram de exploração, pornografia disfarçada de crítica social. A controvérsia só cresceu com o fato de que os atores eram, de fato, adolescentes — muitos sem qualquer experiência profissional — colocados em situações de grande exposição física e emocional.
Hoje, “Kids” é analisado sob outras lentes. A discussão sobre ética na representação de menores em arte ganhou força com os anos, especialmente em um mundo pós-#MeToo e mais sensível ao poder da indústria audiovisual sobre jovens artistas. O próprio Larry Clark, cineasta vindo do universo da fotografia explícita de jovens marginais, foi ao longo das décadas alvo de questionamentos sobre seus métodos. O debate ético não diminuiu com o tempo: ao contrário, se intensificou.
Estética da realidade ou exploração da miséria?
A produção do filme foi de baixo orçamento, com recursos mínimos, o que garantiu liberdade criativa — mas também ausência de salvaguardas típicas de grandes produções. A improvisação, o ambiente caótico e o envolvimento direto com adolescentes reais de Nova York criaram uma obra bruta e impactante, mas também levantaram dúvidas sobre os limites entre documentar e explorar. Esse debate ainda reverbera com mais força, impulsionado por documentários que reavaliam o impacto emocional que o filme teve em seu elenco — muitos dos quais enfrentaram dificuldades sérias na vida adulta, incluindo vício, problemas legais e morte prematura, como foi o caso trágico de Justin Pierce.
No entanto, “Kids” também deixou um legado indiscutível. Foi um catalisador para novas vozes do cinema independente, abriu portas para discussões sobre saúde sexual, HIV, e violência juvenil, e ainda é estudado em cursos de cinema pelo mundo. O roteiro de Harmony Korine virou uma referência no realismo sujo americano, e sua carreira posterior (com filmes igualmente controversos, como “Gummo” e “Spring Breakers”) mostra como ele soube canalizar o espírito provocador de “Kids” em outras direções.
O filme foi banido em alguns países, reeditado em outros, e frequentemente citado como exemplo de um tipo de cinema que já não se faz mais. Em tempos de plataformas de streaming e vigilância dos “content warnings”, dificilmente uma obra como “Kids” teria hoje o mesmo percurso. Mas talvez seja justamente isso que o torna um marco histórico: ele é fruto de um momento específico, uma interseção entre a liberdade artística do cinema indie dos anos 1990 e a ausência de filtros da cultura pré-internet.

Agora, quase 30 anos depois, a pergunta permanece: o que, de fato, Kids nos ensinou? Para alguns, que o cinema pode ser um espelho cruel, mas necessário, da realidade. Para outros, que o desejo de chocar muitas vezes atropela a responsabilidade ética do artista. A verdade provavelmente está entre os dois extremos.
Enquanto continua dividindo opiniões, “Kids” segue sendo relevante por seu poder de incomodar. E talvez, em tempos de produções excessivamente filtradas, roteiros moralistas e adolescentes digitalmente higienizados, esse incômodo seja, paradoxalmente, o seu maior valor artístico.
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